O ex-governador surpreendeu a opinião pública ao apresentar sua renúncia ao mandato de deputado federal, na semana passada. É o canto de cisne do político que chega ao fim ou o início da sua ressurreição?
Lúcio Flávio Pinto
Jader Barbalho acrescentou, na semana passada, mais uma façanha ao seu longo currículo político: surpreendeu a todos renunciando ao restante do seu mandato de deputado federal, que terminaria em 31 de janeiro do próximo ano. Os observadores mais atentos já haviam percebido, três dias antes, um indício de que o líder do PMDB no Pará estava se movimentando e preparava alguma iniciativa: um anúncio proclamando sua eleição para o Senado, com “cerca de” 1,8 milhão de votos, voltou a ser publicado em seu jornal, ocupando o rodapé de toda uma página do Diário do Pará. Mas ninguém poderia supor que ele renunciaria a um mandato praticamente no fim.
O Liberal, seu maior e mais constante inimigo, deduziu logo que o ato visava os processos a que Jader responde perante o Supremo Tribunal Federal. Sem o foro privilegiado que o mandato parlamentar lhe confere, as ações teriam que ser devolvidas à justiça comum, estadual ou federal. No caso de procedimentos de competência original da corte superior, os processos recomeçariam do ponto de partida, na 1ª instância. A probabilidade de serem alcançados pela prescrição antes de julgamento final aumentaria bastante. Com ela, o fim da pretensão de punir o réu, levado às barras dos tribunais por uma série de crimes, do enriquecimento ilícito à formação de quadrilha.
O jornal dos Maiorana informou que “pelo menos quatro” dos processos instaurados contra o ex-presidente do Senado “estão na iminência de ser julgados”. Mas uma pesquisa aos autos mostra que todos ainda se encontram em fase de instrução. A maioria dos 22 processos levados ao STF foi arquivada. Os que permanecem pendentes ainda estão sujeitos à produção de provas”. Já O Estado de S. Paulo garante que no dia 16 Jader pediu o adiamento por uma semana do julgamento de um dos processos, sem dar qualquer informação sobre o seu conteúdo. Os mais recentes procedimentos em curso no Supremo são relatados pelo ministro Ricardo Lewandowski.
A interpretação de que a renúncia foi um ato de fuga, conforme O Liberal destacou em manchete, visou impedir o que parece ser o objetivo mais imediato do ex-governador: se apresentar perante a opinião pública na condição de vítima. A mensagem do seu anúncio e de tudo que ele tem dito é clara: se todo poder numa democracia emana do povo e o povo lhe deu quase 1,8 milhão de votos, conferindo-lhe uma das duas cadeiras senatoriais postas em disputa na última eleição, caberia à justiça acatar essa decisão. Se ele pôde se apresentar como candidato e sua candidatura foi deferida para receber os votos dos eleitores, qualquer medida para impedir sua posse se caracterizaria como uma violação da vontade popular. Logo, a justiça o cassou ilegitimamente.
Claro que o enunciado abstrai a complexidade jurídica envolvida na questão, que chegou ao Supremo em função da aplicação imediata – já nesta eleição, apenas cinco meses depois da aprovação do novo diploma legal, e com efeito retroativo – da chamada Lei da Ficha Limpa. Os dois dispositivos foram introduzidos no texto original, que se impôs ao parlamento pelas 1,7 milhão de assinaturas que o endossaram, pelo deputado federal do PT José Eduardo Cardozo, escolhido pela presidente eleita Dilma Rousseff para o Ministério da Justiça.
O objetivo do acréscimo ao texto original era inviabilizar a candidatura de Joaquim Roriz ao governo do Distrito Federal, beneficiando o candidato do Partido dos Trabalhadores, que acabou vencendo. A alça de mira se virou também para Jader, além de atingir Paulo Rocha, que disputava como favorito a outra vaga para o Senado (e acabou sendo derrotado – segundo seus aliados, com a contribuição da omissão da sua correligionária, a governadora Ana Júlia Carepa). Como foi que essas duas disposições passaram pela votação no plenário e os prejudicados em potencial sequer tentaram modificá-las, o que não seria nem difícil, constitui um dos mistérios dessa história conturbada.
Se a mensagem de Jader Barbalho é sofismática, a versão dos seus inimigos não está menos longe da verdade. Ambas se iluminam quando projetadas sobre o pano de fundo da disputa bipolar, que continua a ser a marca registrada da política dominante no Pará. Não há nenhuma informação de conhecimento público sugerindo que nos próximos dois meses o Supremo possa colocar alguma das ações em julgamento, inclusive porque é um período de recesso ou da redução de atividade, além de estar condicionado pela sucessão na presidência da república.
Mesmo quando Jader já não tiver direito a foro privilegiado, com o encerramento do seu mandato de deputado federal, o STF pode decidir continuar a processar as ações que já tiverem sido instruídas, contrariando a tendência de desaforamento para a justiça estadual, como já aconteceu com o deputado Natan Donadon, do PMDB de Rondônia. Se há o convencimento dominante no Supremo sobre a culpabilidade do ex-deputado, é pouco provável que manobras simplesmente protelatórias tenham efeito anestesiante sobre a maioria dos ministros. Pode acontecer o contrário: de estimular a predisposição contra ele.
Na verdade, independentemente do segundo desdobramento da renúncia, é óbvio que o primeiro é colocar o ex-ministro na condição de vítima, mas não uma vítima passiva: assumindo a delegação popular, ele se apresentou como paladino da vontade dos eleitores, desrespeitados pelo poder judiciário, que lhe cassou o mandato. È assim que ele pretende que a mensagem seja recebida pelos seus destinatários. Por isso ele lhe deu uma dimensão mais política do que jurídica.
Na mensagem dirigida ao presidente da Câmara Federal, o também peemedebista (e vice-presidente eleito) Michel Temer, Jader destaca que sua votação significou a rejeição pelo povo da decisão do Tribunal Superior Eleitoral “e, sobretudo, a campanha jornalística odiosa com que meus inimigos atentaram contra meu nome como candidato, por todos os meios midiáticos possíveis, inclusive panfletos”. Essa campanha o teria tornado vítima de uma “violência política”.
Se não há mais escapatória, Jader decidiu cair atirando, para substituir uma imagem ruim, de derrotado e punido, de político em fuga, por outra, de valente e corajoso, que, em função de sua votação, decidiu direcionar toda a sua energia “para fazer respeitar a vontade majoritária, democrática e inquestionável” do povo. A iniciativa pode ajudar, caso ele fique dois ou quatro anos sem poder aspirar a um novo mandato político.
Quando todos imaginavam que se limitaria a esperar pelo resultado da batalha judicial que tem travado pela recuperação dos seus votos ou pela realização de uma nova eleição para o Senado, Jader surgiu com um fato novo, que o colocou outra vez no centro do noticiário nacional, agora como protagonista e não mais como elemento passivo. A divulgação da renúncia ocorreu no mesmo dia em que a imprensa relatava a inauguração das eclusas de Tucuruí por Lula e Dilma, pondo fim a uma novela de 30 anos. A coincidência não deve ter sido mero acaso. Jader ainda estaria resistindo à passagem da decadência ao fim, avivando as cinzas da ressurreição.
Mas há outra hipótese: o Palácio do Planalto poderia ter se comprometido com ele a fazer gestões junto ao poder judiciário para salvar seu mandato ou dar-lhe nova oportunidade para conquistá-lo. A indicação do novo ministro do STF, Edison Messias de Almeida, no lugar de Eros Grau, já aposentado, pode ter sido o dado a que Jader teve acesso privilegiado antes de decidir a renúncia.
Se o processo de preenchimento da vaga for rápido, o novo ministro poderia desempatar a votação no Supremo pela aplicação da Lei da Ficha Limpa contra Jader. Agora, a seu favor. Mas o novo ministro assumiria seu lugar atraindo para si – e reavivando – uma polêmica ainda inconclusa, por sua complexidade, originalidade e também por ser inusitada?
É difícil, por qualquer interpretação que a decisão do Supremo suscitou, não sentir uma ponta de incômodo pelo fato de que ela não é juridicamente sólida, deixando que na sua análise surjam interferências políticas e pressões externas. O empate em cinco a cinco foi um dado infeliz, ao qual se seguiu a recusa do presidente da corte de exercer seu voto de qualidade para desempatar, engendrando uma solução administrativa mais do que controversa. Este desfecho fez a corte suprema da justiça brasileira adotar como sua decisão tomada por instância inferior quando se trata de matéria constitucional (justamente o ponto questionado), que é o Tribunal Superior Eleitoral.
A simples hipótese, admitida por gregos e troianos, de que o novo ministro, que completa o quadro de 11 integrantes da corte, número impar exatamente para evitar o cabuloso empate, possa votar, não deixa mais dúvidas: não houve sentença do STF.Logo, o arranjo que, fundamentado no regimento interno do tribunal, foi se valer de decisão do TSE, não se sustenta perante o mundo legal.
Independentemente da hipótese de retomada da votação sobre a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, com seus dois remendos enxertados na tramitação pelo Congresso Nacional, há outra: a realização de uma nova eleição para o Senado, já que os votos nulos – os que foram dados a Jader e Paulo Rocha – representam 56% dos votos válidos. Há interpretações divergentes sobre a previsão de realização dessa nova eleição. De um lado, os que entendem que a cláusula só se aplica aos cargos do executivo; do outro, os que argumentam que a norma se estende a todos os cargos majoritários, inclusive o de senador, justamente (ou acacianamente) por ser escolhido em eleição majoritária.
A leitura estrita do mandamento constitucional daria razão à segunda interpretação: a referência é apenas a eleição majoritária, sem distinção entre os dois poderes institucionais. Mas os julgamentos no Brasil têm sido feitos com tal elasticidade de entendimento que antecipar as votações das cortes se tornou adivinhação. Quando não, loteria. Sujeita a vastas condicionantes de bastidores.
Mas ainda que a interpretação favorável a Jader prevalecesse, ele ainda teria outro obstáculo: como deu causa à anulação da eleição e dessa nulidade tiraria proveito, não poderia se apresentar novamente como candidato. E, finalmente, mesmo que tudo desse certo para ele, ainda restaria a ameaça de – condenado pelo STF – se tornar inelegível por mais oito anos, a contar de fevereiro de 2011, o que significaria o seu fim político (recuperaria a elegibilidade aos 74 anos, depois de longo tempo distante do poder).
Em qualquer circunstância, Jader Barbalho mostrou que não será sem lances de criatividade e argúcia que ele sairá da vida pública paraense e brasileira, nesta última como o único político paraense com lugar reservado, ainda que sem direito a menção honrosa.
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