sábado, 9 de janeiro de 2010

Retrospectiva 2009 - Abril

Mercados da Amazônia vendem olhos de boto e entregam órgãos de porco

Teste de DNA indica que órgãos comercializados são de outros animais
Em mercados da Região Norte existe o comércio de olhos de boto cor-de-rosa como amuletos. Um teste de DNA realizado pela Universidade Federal da Amazônia (Ufam) aponta que quem compra esse tipo de produto, além de estar cometendo crime ambiental, pode estar sendo enganado.
O exame indicou que esses órgãos, vendidos em mercados de Belém, Manaus e Porto Velho, são retirados principalmente do boto-cinza marinho, mas também podem ser de porcos ou ovelhas.
A pesquisa foi realizada pela bióloga Waleska Gravena, do Laboratório de Evolução e Genética Animal da Ufam. Com autorização do Ibama, ela coletou 43 amostras de olhos vendidos em capitais amazônicas. Depois de analisar geneticamente o tecido desses órgãos, ela descobriu que nenhum deles era de boto cor-de-rosa ou boto vermelho, como é chamado na região.
A maior parte dos olhos analisados era de boto-cinza, também conhecido como tucuxi, da espécie Sotalia guianensis, que só consegue viver no mar. Entre as amostras também foram encontrados quatro olhos de porco e um de ovelha. Segundo a pesquisadora, a ideia de realizar o teste de DNA surgiu depois que amigos dela lhe presentearam com olhos secos, supostamente de boto cor-de-rosa. Como o animal está ameaçado de extinção, ela queria saber se a caça do mamífero era frequente na Amazônia. “Como eles vinham secos, fiquei em dúvida se eram mesmo olhos de boto [cor-de-rosa]”.

Eletrobrás aumenta participação na Celpa

Ronaldo Brasiliense:

A Eletrobrás está negociando com a Rede Energia (novo nome do grupo Rede) um aumento de sua participação na Centrais Elétricas do Pará (Celpa). A estatal tem hoje 34% da distribuidora paraense e pode aumentar essa fatia para 49%. O Valor apurou que a negociação está em andamento e um acordo de acionistas permitiria a transferência da gestão da Celpa para a Eletrobrás. Como quer evitar a reestatização, a estatal terá participação minoritária.A Celpa é uma das distribuidoras mais problemáticas do país. Ela fechou 2008 com receita líquida de R$ 1,263 bilhão e lucro líquido de R$ 38,7 milhões. O lucro antes dos juros, impostos, depreciação e amortização (lajida), foi de R$ 290 milhões. A dívida financeira bruta da empresa soma R$ 1,052 bilhão, que somados a dívidas tributárias (deve R$ 488 milhões ao Refis) e trabalhistas (R$ 233 milhões), entre outras, resulta em dívida total de R$ 1,7 bilhão. A Celpa tem a receber R$ 590 milhões dos controladores, sendo R$ 207 milhões da Rede Energia e R$ 382 milhões da QMRA.Se forem consideradas como pagas as dívidas relacionadas com os controladores ou empresas do mesmo grupo, a dívida financeira líquida da Celpa cai para R$ 1,1 bilhão, o que corresponde a 3,8 vezes a geração de caixa operacional. A opinião de um experiente analista do mercado é que se a Eletrobrás aumentar sua participação na Celpa em 15%, para 49%, deverá negociar antes a dívida dos controladores. "Sem isso, a situação é muito complicada", avalia.A Celpa tem baixa liquidez (apenas 4,39% das ações são negociadas), o que dificulta uma avaliação pelo valor de mercado. Não são conhecidos os critérios para estipular o preço para os 15% que irão para a estatal. No mercado estima-se que os 15% valem entre R$ 50 milhões e R$ 120 milhões caso sejam pagas as dívidas de partes relacionadas. Sem isso, o valor cai para no máximo R$ 50 milhões ou mesmo zero, dependendo de uma análise mais aprofundada dos números.

Lúcio Flávio Pinto: O cangaceiro do cimento

Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós

João Santos exibiu a prova derradeira de que era um verdadeiro sertanejo – antes de tudo, um forte: viveu com intensidade até o último dos seus dias. Uma parada cardíaca encerrou, com a melhor das mortes, a súbita, sua trajetória, no dia 15, em Recife. Ele tinha 101 anos. Até dois anos antes, ainda freqüentava a sede do seu império, um dos maiores do país e o terceiro de maior expressão originário do Nordeste, que ele montou, peça por peça, ao longo de 70 anos. O centro desse negócio era o cimento, um produto essencial e que foi consumido à larga durante a era do “milagre” econômico do regime militar, enriquecendo os dois cartéis do setor: o mais poderoso, do grupo Votorantim, que dominava a região mais rica do país, o Centro-Sul, e o de João Santos, que controlava o Nordeste e o Norte. Não exatamente por acaso, as duas empresas familiares eram de Pernambuco. Os Ermírio de Moraes se mudaram para o sul, se tornando cosmopolitas. João Santos permaneceu fiel à sua terra natal, Serra Talhada. a mesma onde nasceu outro sertanejo famoso: Virgulino Ferreira, o cangaceiro Lampião.
Foi com um cangaceiro sofisticado que eu me defrontei em 1977. Era um sábado à tarde. Marcílio Vianna, ao telefone, me perguntou se eu aceitava ir conversar com o “seu” João, no escritório da Cibrasa, na travessa Padre Prudêncio. Já não havia mais expediente, nem parecia um dia apropriado, mas troquei de roupa e fui. Marcílio, velho amigo do meu pai, era um cavalheiro.
O poderoso capitão da indústria, então próximo dos 70 anos, me esperava atrás da escrivaninha, numa sala austera. Já no cumprimento senti a barra: a mão que apertou a minha era forte, decidida. O olhar sugeria determinação. A voz era de comando, voluntariosa. A conversa ia ser a dois. Marcílio, advogado do grupo, esperou do lado de fora.
João Santos me fez uma proposta direta: queria patrocinar um giro meu pelo mundo. Eu iria visitar as principais fábricas de cimento, com despesas e pró-labore pagos por ele. “Quero que você seja o jornalista que mais conhece a indústria cimenteira”, me disse, com naturalidade. Estava certo de que eu aceitaria a tentadora oferta. Além dos conhecimentos acumulados e do prazer de uma longa jornada internacional, eu voltaria com muitos dólares no bolso. E não tinha compromisso na volta: podia escrever o que quisesse. “Eu sei que o senhor é inteligente e é capaz. Entenda o que lhe ofereço como um prêmio e uma demonstração de admiração”, observou ele, para vencer eventual resistência.
Mas eu não queria aquele prêmio. Agradeci pela iniciativa. Já conhecia o suficiente para me permitir analisar o que estava em causa: uma nova fábrica de cimento do grupo João Santos na Amazônia. Havia dois projetos emperrados na pauta do Conselho Deliberativo da Sudam. O mais antigo, da Caima, previa a instalação de uma fábrica no Pará. Quando a jazida inicial, a da Mulata, em Monte Alegre, se mostrou inadequada para cimento, o local foi deslocado para Itaituba, onde havia depósito enorme de calcário.
O interesse imediato de João Santos, que adquirira a Caima, era pelo mercado de Manaus. Ele queria levar o minério paraense para ser processado no Amazonas e manter em banho-maria o projeto de Itaituba, sentando em cima do mercado para ninguém o ameaçar (e ele impor seus preços). O Pará desempenharia mais uma função colonial, esta em dimensão regional, e o cartel se revigoraria. Eu já escrevera vários artigos, na coluna diária que tinha em O Liberal, combatendo essa idéia. Apoiava a posição do governo do Estado, de implantação simultânea das duas fábricas ou cancelamento de ambas. O governo acabou recuando e aceitou esperar pelo cronograma do grupo: de imediato, Manaus; quando desse bom tempo, Itaituba. Deve ter-se convencido do compromisso assumido pelo empresário.
O jogo estava nessa tensão quando houve a nossa conversa. O velho sertanejo tentou contraditar meus argumentos, a princípio com bonomia. Minha resistência, porém, despertou sua impaciência e fomentou sua fúria. Ele não estava disposto a engolir uma recusa, que não constava do seu repertório. O tom de voz se elevou e o confronto parecia iminente. Pressentindo o pior, Marcílio entrou na sala e me resgatou no momento certo, indo me deixar em casa. Foi a primeira e última vez que conversei com o grande personagem.
Mantive minha posição e pude continuar a expressá-la no jornal. Mas as coisas decorreram como João Santos queria: um dos primeiros atos de José Sarney como presidente, no lugar que devia ser de Tancredo Neves, em 1985, foi inaugurar a fábrica de Manaus. A de Itaituba esperou mais de uma década. Nesse período, funcionou como ponto de passagem (e de justificativa) para outros lugares de peças e equipamentos industriais da corporação.
O poder do pernambucano João Santos era muito maior do que ele se permitia sugerir. Todos os anos uma ordem de Brasília baixava para a Sudam em Belém cumprir: a destinação de recursos de incentivos fiscais para seus empreendimentos, com selo pré-fixado. Ele tinha um método ao mesmo tempo sedutor e esmagador de fazer a sua vontade prevalecer, sem aparecer (raramente deu entrevistas ou se permitiu fotografar). Se tinha um objetivo a alcançar, passava por cima das barreiras que surgissem no caminho da sua execução, como um trator.
Quando a isenção de imposto que recebeu do governo do Pará, na primeira administração do tenente-coronel Alacid Nunes, ameaçava ser questionada, pela sua insólita exclusividade, a sede da Cibrasa (que ele adquiriu do grupo Pires Carneiro) pegou fogo, com todos os papéis dentro. Foi acidente, disse a perícia. Ao deixar o cargo, Alacid passou a chefe do escritório da empresa em Belém, sem quarentena.
Outros militares e políticos, inclusive o legendário general Cordeiro de Farias, integrante da Coluna Prestes, estavam na sua folha de pagamento. Para os agregados, havia sempre um jatinho da Weston disponível. João Santos, além de inteligente, era um homem de sensibilidade, afeito às artes, amigo de Brennand e outros intelectuais. Aos recalcitrantes, porém, a fúria.
Ele viveu muito – e viveu bem. Fez história. Mas, ao contrário dos Ermírio de Moraes e outros notáveis, sua história ainda não foi escrita. Talvez porque, se o enredo não o agradasse, ele podia reagir como no confronto comigo. No final, porém, como outros sertanejos e cangaceiros, que também foi, com verniz de alta civilização, seu grande amigo Assis Chateaubriand, fundador de outro império, o das comunicações, ele acabaria por aceitar a desfeita. E, quem sabe, no íntimo, perdoar o desafeto. João Santos era, conforme a desgastada – mas inevitável – imagem, uma força da natureza. Até o último dia.