Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
João Santos exibiu a prova derradeira de que era um verdadeiro sertanejo – antes de tudo, um forte: viveu com intensidade até o último dos seus dias. Uma parada cardíaca encerrou, com a melhor das mortes, a súbita, sua trajetória, no dia 15, em Recife. Ele tinha 101 anos. Até dois anos antes, ainda freqüentava a sede do seu império, um dos maiores do país e o terceiro de maior expressão originário do Nordeste, que ele montou, peça por peça, ao longo de 70 anos. O centro desse negócio era o cimento, um produto essencial e que foi consumido à larga durante a era do “milagre” econômico do regime militar, enriquecendo os dois cartéis do setor: o mais poderoso, do grupo Votorantim, que dominava a região mais rica do país, o Centro-Sul, e o de João Santos, que controlava o Nordeste e o Norte. Não exatamente por acaso, as duas empresas familiares eram de Pernambuco. Os Ermírio de Moraes se mudaram para o sul, se tornando cosmopolitas. João Santos permaneceu fiel à sua terra natal, Serra Talhada. a mesma onde nasceu outro sertanejo famoso: Virgulino Ferreira, o cangaceiro Lampião.
Foi com um cangaceiro sofisticado que eu me defrontei em 1977. Era um sábado à tarde. Marcílio Vianna, ao telefone, me perguntou se eu aceitava ir conversar com o “seu” João, no escritório da Cibrasa, na travessa Padre Prudêncio. Já não havia mais expediente, nem parecia um dia apropriado, mas troquei de roupa e fui. Marcílio, velho amigo do meu pai, era um cavalheiro.
O poderoso capitão da indústria, então próximo dos 70 anos, me esperava atrás da escrivaninha, numa sala austera. Já no cumprimento senti a barra: a mão que apertou a minha era forte, decidida. O olhar sugeria determinação. A voz era de comando, voluntariosa. A conversa ia ser a dois. Marcílio, advogado do grupo, esperou do lado de fora.
João Santos me fez uma proposta direta: queria patrocinar um giro meu pelo mundo. Eu iria visitar as principais fábricas de cimento, com despesas e pró-labore pagos por ele. “Quero que você seja o jornalista que mais conhece a indústria cimenteira”, me disse, com naturalidade. Estava certo de que eu aceitaria a tentadora oferta. Além dos conhecimentos acumulados e do prazer de uma longa jornada internacional, eu voltaria com muitos dólares no bolso. E não tinha compromisso na volta: podia escrever o que quisesse. “Eu sei que o senhor é inteligente e é capaz. Entenda o que lhe ofereço como um prêmio e uma demonstração de admiração”, observou ele, para vencer eventual resistência.
Mas eu não queria aquele prêmio. Agradeci pela iniciativa. Já conhecia o suficiente para me permitir analisar o que estava em causa: uma nova fábrica de cimento do grupo João Santos na Amazônia. Havia dois projetos emperrados na pauta do Conselho Deliberativo da Sudam. O mais antigo, da Caima, previa a instalação de uma fábrica no Pará. Quando a jazida inicial, a da Mulata, em Monte Alegre, se mostrou inadequada para cimento, o local foi deslocado para Itaituba, onde havia depósito enorme de calcário.
O interesse imediato de João Santos, que adquirira a Caima, era pelo mercado de Manaus. Ele queria levar o minério paraense para ser processado no Amazonas e manter em banho-maria o projeto de Itaituba, sentando em cima do mercado para ninguém o ameaçar (e ele impor seus preços). O Pará desempenharia mais uma função colonial, esta em dimensão regional, e o cartel se revigoraria. Eu já escrevera vários artigos, na coluna diária que tinha em O Liberal, combatendo essa idéia. Apoiava a posição do governo do Estado, de implantação simultânea das duas fábricas ou cancelamento de ambas. O governo acabou recuando e aceitou esperar pelo cronograma do grupo: de imediato, Manaus; quando desse bom tempo, Itaituba. Deve ter-se convencido do compromisso assumido pelo empresário.
O jogo estava nessa tensão quando houve a nossa conversa. O velho sertanejo tentou contraditar meus argumentos, a princípio com bonomia. Minha resistência, porém, despertou sua impaciência e fomentou sua fúria. Ele não estava disposto a engolir uma recusa, que não constava do seu repertório. O tom de voz se elevou e o confronto parecia iminente. Pressentindo o pior, Marcílio entrou na sala e me resgatou no momento certo, indo me deixar em casa. Foi a primeira e última vez que conversei com o grande personagem.
Mantive minha posição e pude continuar a expressá-la no jornal. Mas as coisas decorreram como João Santos queria: um dos primeiros atos de José Sarney como presidente, no lugar que devia ser de Tancredo Neves, em 1985, foi inaugurar a fábrica de Manaus. A de Itaituba esperou mais de uma década. Nesse período, funcionou como ponto de passagem (e de justificativa) para outros lugares de peças e equipamentos industriais da corporação.
O poder do pernambucano João Santos era muito maior do que ele se permitia sugerir. Todos os anos uma ordem de Brasília baixava para a Sudam em Belém cumprir: a destinação de recursos de incentivos fiscais para seus empreendimentos, com selo pré-fixado. Ele tinha um método ao mesmo tempo sedutor e esmagador de fazer a sua vontade prevalecer, sem aparecer (raramente deu entrevistas ou se permitiu fotografar). Se tinha um objetivo a alcançar, passava por cima das barreiras que surgissem no caminho da sua execução, como um trator.
Quando a isenção de imposto que recebeu do governo do Pará, na primeira administração do tenente-coronel Alacid Nunes, ameaçava ser questionada, pela sua insólita exclusividade, a sede da Cibrasa (que ele adquiriu do grupo Pires Carneiro) pegou fogo, com todos os papéis dentro. Foi acidente, disse a perícia. Ao deixar o cargo, Alacid passou a chefe do escritório da empresa em Belém, sem quarentena.
Outros militares e políticos, inclusive o legendário general Cordeiro de Farias, integrante da Coluna Prestes, estavam na sua folha de pagamento. Para os agregados, havia sempre um jatinho da Weston disponível. João Santos, além de inteligente, era um homem de sensibilidade, afeito às artes, amigo de Brennand e outros intelectuais. Aos recalcitrantes, porém, a fúria.
Ele viveu muito – e viveu bem. Fez história. Mas, ao contrário dos Ermírio de Moraes e outros notáveis, sua história ainda não foi escrita. Talvez porque, se o enredo não o agradasse, ele podia reagir como no confronto comigo. No final, porém, como outros sertanejos e cangaceiros, que também foi, com verniz de alta civilização, seu grande amigo Assis Chateaubriand, fundador de outro império, o das comunicações, ele acabaria por aceitar a desfeita. E, quem sabe, no íntimo, perdoar o desafeto. João Santos era, conforme a desgastada – mas inevitável – imagem, uma força da natureza. Até o último dia.
Um comentário:
Essa historia, lembrou-me do meu primeiro e unico contato com o contemporaneo do seu Joao, o Joaquim Fonseca. Era da mesma "escola".
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