quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

As transições críticas: do nada a lugar algum


Lúcio Flávio Pinto:
 
Em 1991 Hélio Gueiros não transmitiu a faixa de governador ao seu sucessor, Jader Barbalho. Enquanto o ex-aliado tomava posse, em 15 de março de 1991, para o seu segundo mandato, o caixa da agência da avenida Senador Lemos do Banco do Estado do Pará funcionava para pagar empresas privilegias do esquema de apoio político de Gueiros, que, na forma da lei, já não era mais o chefe do poder executivo paraense. Como a lei sempre foi considerada potoca pelos herdeiros do caudilho Magalhães Barata, quando contrariava os seus interesses, o governador que saía nem se importou. E ficou em casa, ao invés de ir ao palácio Lauro Sodré passar o cargo a Jader, que venceu o candidato de Gueiros, o atual vereador Sahid Xerfan.

Esta talvez tenha sido a pior transição no governo do Pará desde a redemocratização do país. Nenhuma outra chegou a esse nível de hostilidade, imprevisível quando o próprio Gueiros recebeu a faixa das mãos do governador Jader Barbalho, em 1987. De amigos e correligionários, passariam a inimigos mortais, travando uma das mais violentas batalhas eleitorais da história. O que não os impediu de se reconciliar depois, ignorando tudo o que cada um disse do outro durante vários meses seguidos.

A transição entre Ana Júlia Carepa, do PT, e Simão Jatene, do PSDB, não é nem uma pálida reedição de outras sucessões conflituosas, mas também não é pacifica. Sobretudo, não resulta de um entendimento de alto nível entre as duas principais autoridades públicas do Estado. Uma devia contribuir para que a outra assuma da melhor maneira possível, o que requer, antes de mais nada, lealdade e verdade, na forma de informações exatas e contas abertas.

Os tucanos, porém, já sabem que herdarão um cavalo de Tróia, em cujo ventre haverá muitas surpresas, infelizmente desagradáveis para eles (e para nós). Queixam-se de não receber todas as informações solicitadas e as que lhes foram fornecidas estarem incompletas, não permitindo ter um quadro verdadeiro da engrenagem estatal que irão receber. Mas desconfiam que, até o último dia do seu mandato, a equipe de Ana Júlia trabalhará para tapar buracos e utilizará todos os recursos financeiros disponíveis – ou mesmo avançará sobre o orçamento seguinte, de 2011, por ela enviado ao legislativo.

De certa forma, porém, os petistas estarão quase repetindo o que os tucanos fizeram em 2007. Um dia antes da posse do sucessor, em 31 de dezembro, o governo Jatene disparou atos e providências que afetariam a gestão de Ana Júlia, dentre os quais um autêntico presente de grego: a prorrogação do escandaloso “convênio” (na verdade, um contrato) entre a Funtelpa e a TV Liberal, iniciado na administração Almir Gabriel.

Também os pessedebistas não deram informações sobre a quantidade de assessores especiais contratados pelo gabinete do governador, um dado de divulgação obrigatória que permaneceu sigiloso durante o quatriênio de Jatene. Neste aspecto, o PT não inovou. Só agora, por força da pressão da equipe de transição, sabe-se que o número foi parar em 1.800 assessores, um recorde que o PT conseguiu tirar de Jader Barbalho, o que parecia impossível.

Por trás da tentativa de manter as aparências de cordialidade entre o governo que sai e o que entra, as bicadas que tucanos e petistas têm travado deixam à mostra as descontinuidades na administração pública no Pará. O governo que encerra o seu mandato esconde informações e tenta criar dificuldades para o sucessor, enquanto este se recusa a partilhar o que pensa e pretende fazer depois que assumir o comando do poder executivo.

O revezamento se torna ainda mais complicado quando o chefe da nova equipe já exerceu o cargo de governador, como é o caso de Simão Jatene. Não lhe falta a consciência de que, ao passar o bastão, manteve debaixo do tapete situações que haveriam de repercutir negativamente depois. A lealdade seria um elemento fundamental para dar coerência e continuidade ao processo de sucessão. Na diversidade e alternância próprias da democracia, garantiria o principal: a defesa do interesse público. Quando os apetites pessoais de poder prevalecem, o que devia ser fundamental se torna secundário, quando chega a ser lembrado.

Na esgrima entre os principais executores da transição do PT ao PSDB, o secretário de governo, Edilson Martins, tem razão ao reclamar da inexistência de um programa de governo por parte dos tucanos. É uma crítica que ele podia fazer retroceder quatro anos: Ana Júlia também assumiu sem qualquer programa de governo. Limitou-se à ladainha do orçamento programa, da participação popular nas audiências públicas e outros axiomas do catecismo petista. Mas nada fez de concreto para cumprir a promessa, que lhe proporcionou a vitória na eleição de 2006, de mudar o Pará.

O Pará de 2010, no que dependeu da ação pública estadual, só não é exatamente o mesmo porque, neste quesito, está um tanto pior do que em 2002. O Pará que avançou e mudou, talvez também para uma situação estruturalmente pior, porque dependente ainda mais do extrativismo mineral e seus elos coloniais, viveu à revelia do Estado – ou contra ele, quando bloqueou seus caminhos.

O último governo que planejou o que fazer foi o de Aloysio Chaves (1975/79). Seu maior mérito foi o de ter buscado maior grau de autonomia para o Estado. Seu maior fracasso foi o de não ter conseguido alcançar essa meta: o presidente que tornou possível sua ascensão, o prussiano general Ernesto Geisel, esmagou as pretensões de independência. O domínio da União se tornou esmagador. A autonomia virou elemento decorativo num cerrado planejamento unitário, que só não era bolchevique nos fins.

De lá para cá os governos estaduais se encarregam de fazer decorações no cenário, atender as clientelas e, a partir da instituição da reeleição, procurar uma forma eficiente de permanecer no poder por mais um mandato. Almir Gabriel foi o primeiro a conseguir o objetivo e também fazer o seu sucessor. Simão Jatene chegou ao final do seu mandato como favorito à reeleição. Nem mesmo um candidato à altura se oferecia no horizonte, quando lá Almir surgiu de novo, atropelando um projeto que permitiria ao PSDB realizar no Pará o sonho que se frustrou no país porque Fernando Henrique Cardoso chegou com grande impopularidade ao fim do seu mandato.

A intrusão de Almir acabou com o discurso do PSDB paraense de que a defesa de um projeto para o Estado estava acima de qualquer pretensão pessoal dos seus integrantes. A nova candidatura de Almir, depois dos oito anos em que ele frustrou as melhores expectativas em torno do seu passado, não passava de um projeto pessoal de poder. Espero, Jader Barbalho colocou Ana Júlia no ringue e mandou o ex-governador para a lona. Achava que assim punha fim à hegemonia dos tucanos, que ameaçava prolongar-se perigosamente.

Só não podia imaginar que a sua aliada faria um governo tão desastroso, chegando literalmente ao fim em meio a tantos e tão desconcertantes escândalos quanto no seu começo. Como em outros Estados e municípios em que começou mal, o PT do Pará não conseguiu o voto de confiança para tentar outra vez. Ficou em 2ª época e foi reprovado. O principal efeito do desempenho medíocre foi tirar Simão Jatene do poleiro da aposentadoria e das embaraçantes linhas de pesca para a condição de favorito, que quase venceu no 1º turno, o que significaria a culminância do desastre, tornado absoluto, completo.

Os risos, apertos de mãos e tapinhas nas costas entre vencedores e vencidos depois da batalha, se chegaram a provocar interpretações quanto a uma possível composição entre o PSDB e o PT, evaporaram no avançar da transição, quando foi instalada uma guerra de guerrilhas. Os tucanos estão convencidos de que herdarão uma terra arrasada e não poderão ter um inventário da situação real senão quando assumirem oficialmente o governo.

Os petistas, temendo sofrer nas mãos dos tucanos o padecimento que lhes tentaram impor quando conduziram a investigação da Auditoria Geral apenas para o passado (e tiveram uma das suas mais desagradáveis surpresas quando a auditora-chefe colocou o próprio governo do PT na linha de tiro, antes de pular fora do barco adernante), trataram de empurrar tudo que fosse indesejável para tapetes e armários, lacrar os postas restantes e consumar os acertos que deviam ser arrematados no governo seguinte, na hipótese da vitória de Ana Júlia.

O tom patético da entrevista de Edílson Rodrigues ao Diário do Pará resulta da tentativa de um técnico capacitado de tangenciar as questões graves e controversas e ignorar as falhas que ele próprio apontaria se não lhes fosse o autor. Em alguns momentos, ele fornece munição contra si. Na questão – de moral negativa – dos servidores temporários, admite que, obrigado pelo Ministério Público, Jatene reduziu o quadro de 22 mil para 16 mil integrantes.

O PT quase extinguiu esse remanescente, deixando-o em 700. Mas nomeou outros 11,3 mil, contingente que devolverá a Jatene, prosseguindo-se essa novela de gato e rato em torno da moralidade e do interesse público, enquanto os concursados se mantêm em longa fila de espera.

As manobras em torno dos números do orçamento não camuflam uma realidade escancarada para quem consegue ver através das rubricas: a capacidade de investimento do Estado pelos próximos anos será mínima. As despesas de custeio e de pessoal cresceram tanto que avançaram sobre o capital. Resta a alternativa aos novos dirigentes de recorrer a empréstimos porque a capacidade de endividamento é alta. Alta não por falta de desejo de usá-la, mas de competência para obtê-la. Parece que os agentes financeiros não acreditam muito na capacidade de gestão dos atuais governantes. Terão essa confiança nos novos?

Ter ficado quatro anos à margem do poder poderia dar a Simão Jatene uma nova capacidade de visão e reflexão, um distanciamento favorável ao técnico, permitindo-lhe corrigir os erros do primeiro mandato e adensar-lhe as qualidades. Mas seu retorno ao governo parecia tão improvável que sua viabilização exigiu compromissos e amarras políticas e econômicas tais que o vácuo dos quatro anos pode servir mais para enfraquecer a sua não muito elogiável capacidade de comando, resultando num hibridismo sem direção coerente.

A emergência do PMDB num governo do qual não foi aliado e do qual, ao início do processo eleitoral, era adversário, desnuda a importância que Jader Barbalho teve nos bastidores, em favor do tucano, a partir do rompimento com o PT paraense (mas não com o PT nacional, ao menos até a undécima hora). A eterna litania em torno de fidelidade e traição a compromissos não escritos de campanha vai ser revivida nos primeiros meses do governo Jatene.
O teste também se aplicará ao grupo Liberal, que acompanhou o movimento pendular do seu maior inimigo, o mesmo Jader Barbalho, na desatracação da frota petista à medida que seus rombos se exibiam, antecipando o naufrágio anunciado. Como Simão Jatene atenderá seus antagônicos companheiros de meio de caminho e se protegerá (ou se livrará) de seus tiros a esmo?

O gosto que essas questões deixa é de prato requentado inúmeras vezes – e que já não era satisfatório quando do primeiro cozimento. Essa simetria foi bem assinalada pelo futuro super-secretário tucano, Sérgio Leão. Respondendo à entrevista do dia anterior de Edílson Rodrigues, ele disse ao Diário do Pará que o PT da transição de 2010 repetia o PSDB na passagem de 2006: “Quando, na transição passada, [os petistas] pediram informações das contas do Estado, dissemos que entregaríamos no dia 31 de dezembro. Nós pedimos a mesma coisa para eles e deram, agora, a mesma resposta para a gente”.

Santa sinceridade. Macabra realidade.