Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, irritou seus anfitriões quando, no final do ano passado, decidiu cancelar de súbito a visita que faria ao Tapajós, para ver, ao mesmo tempo, a destruição da natureza e uma tentativa de usá-la com inteligência. O máximo de selva que o chefe das Nações Unidas viu foi no parque zoobotânico do Museu Goeldi, em Belém, de onde voltou atrás na meteórica visita ao Brasil. Sabe-se agora que o motivo do cancelamento da parte mais importante do roteiro amazônico não foi, como se suspeitava, uma saia justa em temas sensíveis ao governo. Há duas semanas, falando em Nova York, Ki-Moon disse que viu-se obrigado a cancelar “uma viagem pelo maior afluente do rio Amazonas porque ele havia secado”.
Li e reli o comunicado da agência France Press, que noticiou o solene pronunciamento do secretário-geral. A seca à qual se referiu Ki-Moon aconteceu no ano anterior ao da sua visita. Mas não no leito do grande rio: atingiu alguns dos seus afluentes, sobretudo as drenagens menores, como os igarapés. Foi um fenômeno chocante, mas não teve relação direta com a ação humana. Resultou de uma combinação de fatores naturais, desencadeados pelo aquecimento do oceano.
Em 2007, contudo, a seca excepcional não se repetiu, não podendo servir de motivo para o ilustre visitante retornar a partir de Belém. A não ser que ele tenha se permitido um recurso da imaginação no seu discurso em favor da água da Terra. Os fins edificantes justificariam o excesso dos meios. Excessos delirantes.
O problema da água potável já é grave no planeta. Um bilhão de seres humanos não dispõem de água suficiente para suas necessidades básicas. Esse cenário é dramático na África, mas a nação mais poderosa da Terra, os Estados Unidos, também já não tem estoque suficiente para suas demandas. Olha com avidez para o seu vizinho, o México, e com alguma luxúria para o baixo rio Grande. A América Latina tem as maiores reservas de água doce do globo.
De vez em quando brotam notícias tão desconcertantes quanto a de Ki-Moon. Denunciam o contrabando de água da Amazônia, carregada clandestinamente em navios de bandeira internacional que transitam pela região. Essa história é tão fantasiosa quanto a do secretário-geral, mas, de fato, estamos nos descapitalizando de água. Não na forma de operações sigilosas de roubo, mas sob a cândida aparência de lingotes de alumínio, bauxita lavada (e seca), alumina, minério de ferro, soja, carne (abatida ou viva) e outros produtos (com ênfase nas commodities) que exportamos dentro da mais perfeita legalidade (e imoralidade). Sem falar no imenso desperdício que praticamos, sem qualquer interferência externa. Por termos abundância, nos permitimos aquela desinteligência, ironizada por Lewis Carrol, no manejo da água.
Sensibilizadas pela situação, pessoas de aparente boa vontade – e evidente descompromisso com a verdade – dizem coisas absurdas, como o secretário-geral da ONU. Parecem achar que, por serem autoridades de embocadura mundial, basta dizer para que suas palavras tenham o poder de transformar fantasias em realidade. Querem defender a Amazônia, pelo que lhes devemos gratidão. Mas não conhecem a Amazônia, pelo que lhes pedimos que nos deixem falar. E também poder decidir sobre o que é nosso ou nos diz respeito.
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