Lúcio Flávio Pinto
Um dos mais pungentes livros que li na vida foi A Confissão. Seu autor, Arthur London, foi preso como traidor quando era vice-ministro das relações exteriores da Tchecoslováquia, em 1951. Antes de chegar ao posto, foi membro da Juventude Comunista, aos 14 anos, e seu dirigente, aos 19. Combateu como voluntário ao lado dos republicanos na guerra civil espanhola. Repatriado, participou da resistência aos nazistas e ao regime colaboracionista de Vichy, em Paris. Ele e a mulher foram presos, torturados e enviados a campos de concentração. Seu filho nasceu atrás das grades. Sobreviveu.
Quando parecia que ia participar como herói da instalação do socialismo em seu país, pelo qual tanto batalhara, foi preso e passou por torturas semelhantes às dos nazistas. A diferença é que enquanto enfrentava as primeiras, movido por um ideal, sob as segundas o ideal se desfazia brutalmente. A espantosa resistência de London às agressões físicas e psicológicas ruiu. Ele tentou o suicídio da forma possível naquela masmorra: fazendo uma greve de fome não declarada. Depois de 18 dias à base de pouca água, o que o reanimou foi lembrar que outro resistente se suicidara, como ele pretendia. Ao invés de reparar a memória, foi desonrado de vez. Restara-lhe a acusação de traidor, aceita pela própria mulher.
Em que consistiu de fato a traição desses personagens com biografia de rara nobreza? Não se amoldarem à forma do "socialismo real" que lhe impunham. O drama de London se explica no contexto dos "processos de Moscou", uma tenaz perseguição aos hereges do socialismo pelo inquisidor-mor, "papá" Stálin. Hoje, os autos desses processos estão disponíveis, mas quando o acesso aos documentos originais era escasso, o livro de Arthur London se apresentava o mais comovente testemunho sobre essa barbárie política.
Ele resistiu a longos anos de prisão, em condições anti-humanas, graças à sua força interior, à sua honradez, à sua dignidade. Quando foi libertado, voltou a Paris, que fora seu abrigo e seu front contra os nazistas. Mas não se tornou um adversário rancoroso e dogmático, como Arthur Koestler, por exemplo: seus ideais permaneciam imaculados e sua alma, livre. A Confissão é ainda mais comovente porque quem a relatou é um espírito superior: vê cada animalidade daquele sistema totalitário sem se deixar contaminar pelo veneno da sua brutalidade. Não existe documento individual mais devastador contra o "socialismo real" e a opressão política em geral.
London ainda teve a satisfação de ver seu livro transformado num grande filme por outro combatente das ditaduras, o grego Costa Gavras, e se ver representado por um ator do porte do francês Yves Montand. Morreu pobre, mas em paz, em 1986. Ter chegado aos 71 anos depois de tantos desgastes, sendo tuberculoso, é a prova de que a mente, conjugada à alma (ou à anima), é um instrumento de vitalidade superior aos exercícios das academias de ginástica e aos regimes de saúde total, nos quais se condicionam os fanáticos dos nossos dias, negligenciando seu principal patrimônio: a inteligência.
Não é por isso, entretanto, que falo de A Confissão, mas porque o livro me veio à memória ao acompanhar um novo capítulo da triste novela, que já dura seis anos, sobre o assassinato do prefeito de Santo André (SP), Celso Daniel. Sem entrar no mérito da polêmica, ainda sujeita a muitas controvérsias, o que me espanta atualmente é a condição de exilado político de um dos irmãos do então prefeito, Bruno Daniel. Depois de quatro meses sob a proteção da polícia paulista, ele decidiu ir embora do Brasil, junto com a família, e conseguiu convencer o governo francês a recebê-lo como refugiado político, no início de 2006.
No mês passado, ao falar à imprensa sobre a insólita situação, o chefe de gabinete da presidência da república, Gilberto Carvalho, disse que a transferência da família de Bruno para a França era uma "opção pessoal" (como fora pessoal a opção de outro irmão, João, de vender tudo no Brasil e se mudar com a família para a Itália, onde vive e trabalha atualmente). Não há dúvida de que as duas decisões foram pessoais. Mas as circunstâncias que as explicam se relacionam à ordem pública.
Bruno e João se declaravam ameaçados de morte por sustentar que o irmão foi assassinado por seus amigos e correligionários, à frente o empresário Sérgio Gomes da Silva, e não num crime comum, de assalto. O empresário é acusado de estar por trás de uma engrenagem de corrupção, que resultaria em contribuições para o caixa dois do PT, o seu partido, contra a qual o prefeito teria tentado reagir. Sérgio tem o sugestivo apelido de "Sombra".
Ao invés de dar de ombros sobre a história, o governo do presidente Lula devia se preocupar em demonstrar que a alegação da família do prefeito assassinado é falaciosa (ou fantasiosa). A gravidade da questão não cabe no desdenhar do seu auxiliar, tão próximo que, no caso, representa a voz do dono: como pode haver exilado político em uma democracia? Afinal, estamos mesmo numa democracia, ou ela apresenta contornos que, mesmo ainda de forma embrionária e sutil, têm algo a ver com o paraíso irreal do stalinismo, um irracionalismo (ou anti-razão) que fez de London um traidor?
O grande desafio da esquerda é conviver com a oposição, a crítica, a pluralidade, a alternância - em uma palavra, com a liberdade. Em sua manifestação mais contemporânea, esse conflito começou a adquirir forma quando os marinheiros do Kronstadt se rebelaram, ainda na metade da primeira década da gloriosa revolução russa, e foram violentamente reprimidos. Trotsky, comandante (civil) do Exército Vermelho, consentiu em dar a ordem da repressão.
No eco dessa ordem, ele, seus adeptos e sucessores também passaram a ser tenazmente perseguidos por Stálin. Trotskista passou a ser sinônimo de traidor, herege, infiel. A sentença, refratária ao debate das provas, caiu como lâmina mortal sobre muitas preciosas cabeças, como a de London, que resistiu, como exceção à regra do massacre. Quando o monstro da intolerância sai das grades, ninguém está protegido. O inventor da guilhotina morreu guilhotinado na revolução francesa, a matriz da esquerda moderna.
Bem ou mal, nosso regime é o democrático. Não estamos sob uma ditadura, portanto. Mas alguns dos homens mais poderosos da república têm impulsos de intolerância e despotismo. Se pudessem, calariam os personagens que lhes são incômodos e bloqueariam os canais da livre circulação de informações e idéias. Isso não pode acontecer.
A prova dos nove do paradoxo de termos o primeiro refugiado político em plena democracia tem que ser realizado pela via da demonstração, em juízo ou fora dele, não por uma declaração de descompromisso tácito, como a de Gilberto Carvalho, falando por Lula. Declarações assim eram dadas ao público, enquanto pessoas dignas como Arthur London eram perseguidas. A contradição pode servir à direita, mas ela aparece como indignidade na boca de personagens altivos, como Hélio Bicudo, um dos fundadores do PT e símbolo de um Ministério Público atuante.
A prova dos nove em democracia se faz pelo exercício da demonstração da verdade, com tese, antítese e síntese. Todos falando e todos perguntando até que o distinto público esteja esclarecido. Isso é uma utopia, mas sem ela testemunhos como o de London se tornarão inutilidades patéticas. A nossa ubíqua tradução - e supina frustração.
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