Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
A Companhia Vale do Rio Doce conseguiu reajustar em 65% os preços do minério de ferro que comercializa no mercado internacional, conforme anunciou gloriosamente na quinzena passada. O aumento só foi inferior ao de 2005, que chegou a 71%. Mas para o produto de Carajás o reajuste continuou a ser recorde: os mesmos 71% de três anos atrás. A razão: o minério do Pará, com 65% de hematita pura, é o melhor do mundo. Por causa dessa qualidade excepcional (realçada ainda mais pelo volume das jazidas, das maiores do planeta), Carajás proporcionará um ingresso extra de 600 milhões de dólares aos cofres da Vale neste ano. A pergunta imediata é: por que só a empresa tira proveito de um atributo físico do minério do Pará? Por que o Estado não pode tirar vantagem de sua própria riqueza?
No momento em que os novos contratos de fornecimento de minério estão sendo fechados, para vigorar no exercício financeiro dos compradores, apenas as grandezas apregoadas pela Vale foram destacadas pela imprensa e ecoadas pelo governo. Tudo muito longe do Pará, parecendo estar fora do seu alcance, embora a fantástica mina de Carajás se localize em seu território. Ele é efetivo ponto de partida de todo processo, mas é como se nada tivesse a ver com os desdobramentos a partir daí. Nunca é o ponto de chegada dos maiores benefícios, principalmente porque não se esforça para entender a engrenagem que secciona a riqueza natural, circunstancialmente situada em seus limites, do seu uso e controle.
Mesmo quando parece que, finalmente, alguma nova renda ficará retida no Estado, não é possível soltar foguetes ao simples anúncio da benesse. É o caso da siderúrgica que a Vale prometeu instalar no Pará, por pressão do presidente da república, pressionado, por sua vez, pela governadora do Estado. Desta vez, a metodologia será diferente: ao invés de ir atrás do parceiro de investimento e só depois definir a localização do projeto, a Vale parte da definição locacional à espera que surja um sócio disposto a entrar no negócio. Parece um caminho mais incerto, principalmente no momento em que ela implanta três outras siderúrgicas (no Ceará, Espírito Santo e Rio de Janeiro). Mesmo que saia mais essa usina de placas de aço, o objetivo maior é agregar valor ou consolidar o monopólio ao longo da ferrovia de Carajás, colocando as guseiras no redil?
Carajás é a pérola da coroa da Vale. No íntimo, seus principais executivos devem pensar que essa pérola foi atirada aos porcos, que somos nós. Porcos em sentido figurado, não literal: pessoas incapazes de entender o que é dispor de uma pérola dessa qualidade, rara mesmo quando se trata de uma substância mineral abundante em quase toda crosta terrestre, como o minério de ferro.
Os australianos dominavam o mercado mundial e estavam preparados para sair na frente de todos os concorrentes no atendimento do consumo asiático, em especial da China. No entanto, foram passados para trás. Eles têm a enorme vantagem de estarem muito mais próximos da Ásia do que o Brasil, distante 20 mil quilômetros. Mas quando Eliezer Baptista deslocou o alvo, primeiro para o Japão e, depois, para a China, tinha no colete o teor de pureza da rocha de Carajás, contendo quase o dobro da hematita presente no produto australiano. Os dois terços a mais de distância foram neutralizados e o comprador ganhava em tempo, em energia, em desgaste – em custo, enfim.
Mas agora os australianos estão dispostos a endurecer a competição. Eles tocaram num ponto nevrálgico, que também foi exposto aqui (acho que pela primeira vez em toda imprensa brasileira) na edição passada, sem provocar o menor comentário das lideranças institucionais do Estado, como se este jornal estivesse tratando das pedras de Marte: o frete marítimo de Carajás para a Ásia.
Inteligentemente, a Vale não inclui no reajuste do minério o custo do frete, que é quase o dobro do custo de extração do minério (este, US$ 50 FOB, posto no porto da Madeira, em São Luís do Maranhão; aquele, US$ 90 até a China). O frete é pago pelo comprador e a Vale faz essa transação através de outra de suas empresas, autônoma, que não entra no seu custo direto, mantida a saudável distância dos holofotes, postos sempre à disposição do seu presidente, Roger Agnelli. Um reajuste como o que foi conseguido na primeira rodada, com o Japão, a China e a Alemanha, jogaria o frete para um valor insuportável, de mais de US$ 150, minando a competitividade da Vale.
Os australianos, com o apoio de outros concorrentes da mineradora brasileira, querem que o aumento inclua tudo, até o frete. Por isso manejam valores como 100% e 150%. Os analistas mais apressados estranharam que a Vale não esperasse para chegar a preço maior e os japoneses, por sua vez, que falavam em 35%, tenham cedido quase o dobro. A razão é que, se antecipando aos movimentos altistas dos australianos, o vendedor sai ganhando, ao deixar o frete de lado, e o comprador também, por se livrar de uma facada maior.
Nas radiosas notícias espalhadas pela grande imprensa nacional, todos saíram ganhando com a quase quadruplicação do preço do minério de ferro nos últimos cinco anos. As exportações da Vale, se os novos preços forem aplicados a todos os seus contratos, passarão de US$ 20 bilhões. De Carajás sairá quase US$ 9 bilhões só em minério de ferro, a maior parte da produção destinada ao mercado externo (em proporção muito maior do que no Sistema Sul da Vale, que serve o mercado nacional). De cada 10 dólares de saldo da balança comercial brasileira previsto para 2008, US$ 2,5 serão fornecidos pela ex-estatal. É feito sem paralelo na história da economia nacional. Dos US$ 10 bilhões líquidos que passarão do caixa da empresa para os cofres do Banco Central, quanto sairá de Carajás? Um quarto, talvez; ou até mais?
E nós, os porcos, aos quais essa pérola foi atirada? Míriam Leitão divulgou em sua coluna cálculo feito pela Vale, com base em dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Siderurgia, segundo os quais o valor do aço aplicado em um carro Gol, da Volkswagen, é de 10% do seu custo, e por isso o reajuste, para o bem de todos e felicidade geral da nação, pouco afetará o consumidor brasileiro. Já o custo com o minério bruto na produção do mesmo carro é de apenas 0,4%. Sai no calor.
Como só ficamos na ponta inicial da linha, da extração e venda do minério, sem avançar sobre a transformação industrial, essa é a parte que nos cabe no latifúndio de faturamento da Vale e do Brasil. É a parte do porco na venda da pérola. Se estamos satisfeitos e não nos interessa nada além, então à lama, companheiros.
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