quarta-feira, 16 de abril de 2008

Crônica de 4ª Feira - Esse rio é minha vida

Miguel Oliveira
Editor-Chefe

Quando esta crônica estiver sendo lida, quatro navegadores que partiram de Santarém, segunda-feira, a bordo de caiaques pelo rio Amazonas, em direção a Belém [ notícia que você poder ler em outra página deste jornal ] já devem estar extasiados pela aventura no Mar Dulce. Imagino que deve ser uma aventura extraordinária singrar, no remo, as águas do Amazonas em direção a sua foz estuário-deltáica.
O rio sempre me fascinou. Nasci praticamente dentro d'água. Nossa humilde casa dava fundos para as águas azuis do Tapajós, na maior parte do ano. Em algumas ocasiões, o Amazonas 'avançava' até a margem direita. Era a época da pescaria farta, sem muito esforço. Rio dentro do quintal, cercado de madeira. Um 'lago' particular, piscoso e, às vezes, traiçoeiro.
Em época de cheias dos rios, nosso quintal mais parecia um estacionamento de canoas. As nossas, as dos vizinhos e dos amigos de meus pais. Tive um vizinho que até hoje não arredou o pé daquele pedaço mágico de Santarém: Edmundo, um dos filhos de dona Cassiana. Nasceu, cresceu e ali vive até hoje ao lado da família, depois de uma curta temporada no bairro da Aldeia, enquanto sua casa passava por uma reforma completa.
Confesso que alimento o sonho de, quem sabe um dia, voltar a morar ali, embora nada tenha a reclamar do meu novo aconchego, no Santíssimo, onde moram eu, minha esposa Rejane e Aluísio, o filho dela que domingo completou 15 anos de idade.
Sonho acordar com o apito dos navios, do farfalhar do esguio jaurizeiro, que um raio o partiu ao meio, derrubando a vistosa palmeira ao chão. Lembro do canto meloso das gaivotas e do silvo esganiçado do pato mergulhão, habitantes do rio naqueles bons tempos de menino, como diria Ataulfo Alves. Mas hoje a realidade é outra naquele pedaço da minha infância, semidestruído pela poluição e assoreamento de portos particulares às proximidades.
Mas todo esse rodeio é para contar um episódio vivido por meu irmão Bené, que hoje é engenheiro mecânico e de segurança. Não é uma louvação familiar.
O Bené é um cara batalhador que, quando rapaz, pegou no pesado para ajudar minha mãe a nos criar e educar. O meu irmão tinha uma íntima relação com o rio. Ele tinha o apelido de 'nêgo', de tanto pegar carona na popa dos barcos. E se dizia que ele era 'nêgo' por causa bafejo no rosto que levava da fumaça preta que saía da descarga dos motores de centro das embarcações.
Uma noite, um dos navios da SNAP que estava ancorado no velho trapiche, de passagem para Manaus, permitia a venda de peças do artesanato santareno, principalmente cuias bordadas, leques e bolsas de palha. Ainda não se vivia esta paranóia das aves em extinção. Mas é claro que o navio atraia vendedores de todo tipo de produto.
A notícia correu solta e chegou em casa. Para faturar um dinheirinho, rapidamente meu irmão se enfurnou na canoa, não sem antes pegar dois casais de patos e botou-se a remar desesperado contra a correnteza até o trapiche. O primeiro casal de aves, amarado pelos pés, foi fácil de vender. Alguns minutos após a primeira venda, o negócio estava fechado. Bené contava o dinheiro, cédulas de cruzeiro molhadas, quando uma voz irrompeu do convés do navio:
- É proibido levar animais vivos na viagem a não ser que o vendedor fique a bordo para limpar a sujeira dos patos!
Atônito, Bené parou de desenlaçar as cordas, olhando tristonho em direção dos fregueses, quando se deu conta que os patos já estavam sendo atirados de volta à canoa.
- Devolve o dinheiro rapaz! - gritava uma das passageiras.
E Bené se pôs a olhar o dinheiro fugindo-lhe das mãos que, vazias, trataram logo de se contentar com o remo, movendo a canoa que se afastava do trapiche rumo ao nosso lago particular até que outra aventura a tirasse dali.
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P.S: Paulo Bemerguy e Euclides Farias, dois jornalistas amigos, o primeiro meu conterrâneo, me escrevem acerca da crônica sobre os dicionários. Obrigado pelas palavras de incentivo.
P.S:(2) Reuni domingo, em casa, um grupo de amigos dos tempos de Dom Amando, todos quarentões como eu. A esse grupo se juntaram irmão Leonardo e Antenor Giovaninni, um paulistano que é mais santareno do que muitos que nasceram aqui. Foi um almoço agradável e de muitas reminiscências.

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