quarta-feira, 2 de abril de 2008

Crônica de 4ª Feira - Eu e os dicionários

Miguel Oliveira
Editor-chefe de O Estado do Tapajós

Não guardo segredo que sou fã de dicionários da Língua Portuguesa. Tenho por hábito consultar minhas velhas coleções de vocábulos em ordem alfabética, mesmo que não esteja em dúvida quanto à grafia correta de uma palavra. Sobre minha estante estão empilhados, sempre em alerta, inúmeras versões do Aurélio, Houais e Silveira Bueno. E há, também, os minidicionários da Melhoramentos.
Posso parecer antiquado ao confessar isso de público. Mas hoje, com a linguagem escrita sendo a cada dia mais e mais modificada pelos códigos lingüísticos usados na internet, continuo com minha solitária cruzada cívica. Nem que seja como passsatempo, o dicionário é uma boa companhia.
Mas eu queria contar que este velho hábito de folhear dicionários foi-me despertado por um professor de história, no começo do antigo ginasial do Colégio Dom Amando, em Santarém, e não por uma professora de gramática, o que seria mais lógico.
Irmão Leonardo foi professor de muitas gerações do CDA. Talvez eu esteja incluído em uma das últimas turmas em que o velho mestre lecionou regularmente, no final da década de 70. Aos poucos, os trabalhos da Pastoral do Menor lhe afastaram da sala de aula, bem como suas freqüentes viagens ao sul do país e ao exterior, o que lhe impossibilitam de dedicar-se ao ensino. Mesmo assim, na Pastoral, irmão Leonardo dá aulas de reforços para os meninos e meninas carentes assistidas por aquela entidade mantida pela igreja católica e por colaboradores.
Foi durante uma aula de história, na sexta série, que tudo começou. Certo dia, a lição era ler e interpretar um texto sobre as relações comerciais do Brasil com a Argentina, na época colonial. O texto misturava um pouco de economia e de geopolítica, assuntos incompreensíveis aquela altura para uma turma de meninos de calças curtas. Naquele ano de 1973, o ginásio do CDA não permitia o ingresso de meninas, o que viria acontecer somente em 1975.
Por entender que o texto continha palavras difíceis, de pouco uso, irmão Leonardo sugeriu que marcássemos as expressões que não sabíamos o seu significado. Poucos alunos deram muita bola à recomendação, talvez pensando que tal lição não seria cobrada na aula seguinte. E qual foi a nossa surpresa?
- Vamos ao quadro hoje. Vou escrever estas palavras para ver quem sabe o seu significado - falou em tom de ironia o velho mestre, com aquele sorriso maroto que todos conhecem.
Silêncio sepulcral. Manoel Canté, Mário Sabá e Edibal Cabral(Pipa) se ajeitavam nas cadeiras, como se tentando se esconder. Eu, Paulo Bemerguy e Paulo Neves, que sentávamos em filas próximas, nos entreolhamos, sem saber o que fazer.
E irmão Leonardo pôs-se a escrever as palavras 'difíceis' no quadro de giz, ou lousa, como gostava de denominar a professora Rosinete Amaral.
Embora não soubesse o significado de sete das oito palavras elencadas, uma me chamou a atenção, em particular. Não sei se pela pronúncia, meio afrancesada, mas achei o nome bonito: escaler.
Na hora do recreio, estava eu a perturbar dona Nice, à procura de um dicionário na velha biblioteca, no prédio B do CDA. Matei a minha curiosidade, voltei à sala com outras palavras difíceis na ponta da língua, a desafiar meus colegas. Foi um casamento sem alianças que mantenho até hoje.
Muitos, como eu, no passado, talvez não saibam que escaler é um bote movido a remo, de auxílio às caravelas.
Mas um escaler, que transportava os colonizadores das carvelas até a terra firme, foi quem me trasladou até este mundo fascinante dos dicionários, tendo como timoneiro irmão Leonardo.

P.S:
Para não ficar devendo uma crônica em homenagem à minha velha mestra Gersonita Carneiro, confesso que estava guardando essa crônica do dicionário para publicá-la somente após reconstituir minha primeira crônica, 'Coqueiros de minha infância", cujo texto foi corrigido por minha eterna professora de português, de quem eu herdei os hábitos de ler e escrever com freqüência.
Mas minha memória já não é tão privilegiada e essa crônica - escrita em folha de papel almaço, está perdida no tempo -, que eu tanto gostaria de dedicar à Gersonita, fica para uma próxima oportunidade, quando eu considerar que o texto atual é o mais próximo da versão original, escrita na minha infância.

4 comentários:

Poster disse...

Grande Mano,
Que saudade daqueles tempos.
Lembro-me perfeitamente do irmão Leonardo em suas aulas de História, instigando os alunos a dizer o significado de certas palavras indispensáveis para a compreensão de um texto.
E o Mário, e o Canté, por onde andam?
Abs.
PB

Anisio Quincó disse...

Por falar em Gersonita Carneiro, a professora Gersa, é à ela que credito a minha "perda" de medo de falar em público... A sexta-feira para declamar poemas de Olavo Bilac e outros, surtiu efeito, professora!

Shirlei G.F Figueira disse...

Parabéns por sua cruzada cívica. A causa é boníssima!

Carol Basso disse...

Algum de voces tem fotos desse tempo de escola? Gostaria de recebe-las para dar de presente ao meu marido, filho do Manoel Canté.