Lúcio Flávio Pinto
O novo desembargador não é aquele que a governadora, responsável pela nomeação queria. Nem o que o TJE esperava. Muito menos aquele no qual os advogados escolherm. Assim, mais uma vez, o quinto constitucional será preenchido por critérios políticos duvidosos. Ou por uma lógica negativa.
Só promotores e procuradores integram o Ministério Público. Da Ordem dos Advogados apenas advogados fazem parte. Por que é, então, que membros do MP e advogados têm direito a um quinto dos lugares nos tribunais de justiça? A alegação, que não vale para nenhuma das duas outras instituições, é aplicada às cortes superiores de justiça do país: elas precisam expressar a sociedade, abrigando suas representações. Daí reservarem cadeiras para aqueles que exercem função complementar e concorrente na atividade judiciária: as partes, representadas por seus patronos, e o fiscal da lei (ou autor, em matéria penal), o MP.
No entanto, essa participação, ao invés de preservar a autonomia e a independência entre as partes, acaba anulando o significado da existência do quinto constitucional. Os desembargadores escolhidos entre advogados e representantes do MP raramente preservam os compromissos de origem, deixando-se impregnar e absorver pelas normas da corte. Em regra, incorporam o rito e o siso que antes criticavam, mesmo ao assumirem seus cargos com a retórica de contribuir para a dialética processual, reduzindo o tempo na instrução e dando voz a todos. Com o inconveniente adicional de muitas vezes não terem uma visão mais profunda e íntima do exercício da função judicante, ao contrário de um magistrado que cresce no exercício da carreira.
Não surpreende que a maioria dos ungidos pelo quinto constitucional, ao pular diretamente para o fim da carreira como uma esperança, acabe por se tornar uma frustração. Isso, quando é o caso de seus nomes suscitarem alguma expectativa positiva ao serem apresentados para a disputa.
Talvez amadurecendo sobre as impropriedades e equívocos dessa sobrevivência de corporativismo encastelado na cúpula do judiciário, o Conselho Nacional de Justiça decidiu recomendar às várias instâncias do poder que participam do processo a adoção de um rito de seleção e escolha público e transparente. Assim, pelo menos, se evitaria o desgaste da legitimidade desse processo, já tão questionado, até ele poder ser encarado frontalmente. É o anseio da sociedade. Mas não é o desejo das corporações, apesar da iniciativa profilática do CNJ.
O Pará, sempre tão distante de tudo, preferiu continuar a optar pelo tradicional, mesmo quando revestido de novos adereços. Já a OAB estadual não abdicou do voto secreto, conquista inegociável quando é instrumento de manifestação universal, e o manteve na seleção dos nomes que referendaria para a votação dos seus associados (que, desmotivados, compareceram minusculamente às urnas). Numa seleção de méritos, na qual o que se avalia é a qualificação técnica do advogado para desempenhar a função de fazer a justiça, o voto secreto é a ante-sala do acordo político, da negociação lateral. Já que o voto prescindiu da fundamentação, dita para todos ouvirem e se convencerem de que foi mesmo escolhido o melhor.
O processo obedeceu a essa marca até o fim. O pleno do Tribunal de Justiça do Estado ignorou a sábia recomendação do CNJ e se apegou à anacrônica regra do regimento interno. O que devia ser uma aferição pública de qualidades para a escolha de um novo desembargador tornou-se um desvio à rota segura, pelo qual se infiltraram cabos eleitorais não assumidos. O intenso jogo de bastidores, nem sempre praticado sob regras elevadas, se estendeu ao processo decisório, que incorporou as manobras feitas em torno do perde-e-ganha, do dá-e-toma, do faz-e-pode. A política se manteve e até se acentuou. O Pará, que já era arcaico antes do habemus desembargador, ficou ainda mais anacrônico depois.
Como explicar, por exemplo, o critério do mínimo minimorum dos desembargadores, adotado no 11º escrutínio, depois de quatro horas de sessão, de passar para a última posição da lista tríplice quem era o último em votos gerais dos advogados na lista sêxtupla, remetida pela OAB para a deliberação dos magistrados? Por que não o quarto ou o quinto colocado? Se fosse o quinto, todos já sabiam: seria esse o novo desembargador, Paulo Sérgio Weyl, o favorito da governadora, o aliado que lhe restara depois da exclusão de outros preferidos, como Luiz Neto e Jorge Faria, que ficaram na pré-seleção de 25 nomes submetidos à sabatina do conselho seccional da OAB local.
Quem mexeu os votos para que o sexto subisse para a terceira posição sabia perfeitamente o que estava fazendo: Ana Júlia Carepa não sacramentaria os dois primeiros da lista. O mais votado de todos, Haroldo Guilherme Pinheiro da Silva (pela segunda vez nessa posição), era o preferido da categoria e alguém que reforçaria a posição do TJE com seu conceito profissional. Indicando-o para substituir o falecido desembargador Geraldo Lima, a governadora estaria apenas seguindo a determinação do tribunal. Ou sujeitando-se ao magistrado maquiavélico, que a deixou no aparente xeque-mate: a segunda alternativa (de Edilson Dantas) representaria para a petista reconhecer que quem mais conta no seu governo é o deputado federal Jader Barbalho, padrinho do segundo colocado, advogado de suas empresas de comunicação.
Quem acompanha essa sinuca de bico há bastante tempo sabia muito bem que a chefe do poder executivo não daria essa satisfação ao desembargador sagaz: optaria pela zebra, aquele pretendente que não se sabe exatamente como passou pela consulta universal, entrou na lista sêxtupla e foi catapultado, a muito custo, depois de 11 votações, para a lista tríplice. O todo-poderoso Jader Barbalho deve ter chegado de pronto a essa conclusão ao saber dos três nomes que passaram pelo crivo dos desembargadores. Soprou-a para sair na principal coluna do seu jornal no dia seguinte, acertando na mosca.
Jader passou por situação igual quando governador. Seu candidato era o consultor-geral do Estado, João Roberto Cavaleiro de Macedo, nome de respeito e de méritos. Mas cometera o pecado mortal de bater de frente com o tribunal, num momento em que Jader tentava apagar a péssima imagem do seu primeiro governo (1983-87), bem no começo da segunda gestão. O que os bons analistas previam se consumou: o tribunal excluiu o preferido do governador da lista tríplice. Irritado, Jader foi ao último dos selecionados, que era bem pior do que simples azarão, indesejado até pelo tribunal, que imaginara ter deixado o governador sem saída.
A única inovação no comportamento de Ana Júlia foi a rapidez: ao invés de esperar pela remessa da lista dos sagrados pelo concílio (ou seria melhor dizer: conciliábulo?) de desembargadores, ela mandou buscar o papel e em pouco mais de três horas desferiu o sinal de fogo, que traduziu sua ira pela surpresa e a contrariedade (se escolheram o sexto para fechar a lista, por que não o quinto?). O novo desembargador, Leonam Gondim da Cruz Jr., foi tão surpreendente quanto João Alberto Paiva e Geraldo Lima antes dele, dois dos últimos quatro desembargadores-advogados (os outros foram Milton Nobre e João Maroja).
Ele poderá fazer declarações de propósito e anunciar programas, mas sua escolha é fruto desse processo, que, por seguir linhas tortas, acaba tortuoso. Permite que interesses pessoais ou corporativos prevaleçam sobre a causa pública. E quando a vontade de um dos poderosos praticantes desse jogo fechado é contrariada, sua vingança se traduz em mais contrariedade ao que devia ser o objetivo dessa caminhada: o bem de todos. Eis, entretanto, o que não está em foco nesse percurso, que, sendo da justiça, acaba por se reduzir a uma justa entre poderosos.
O Pará permanece muito distante do contemporâneo.
Um comentário:
Por que permaneceu na Lei a nomeação dos representantes da OAB e MP, pelos governadores? Resquício dos governos militares que nomeavam inclusive os magistrados de carreira...Essa regra deixa tal escolha à mercê dos jogos políticos. O TJ deveria ser totalmente independente para eleger seus membros.
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