Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
Eu acabara de receber a notícia da morte do empresário Cecílio do Rego Almeida, na tarde do dia 22, quando um amigo ligou:
– Feliz com a notícia?
Não, eu não estava feliz. Por certo tempo, fiquei sem saber o que pensar. Uma sensação de vazio, de surrealismo, de absurdo e de inutilidade. De tempo perdido, de vida dissipada. Durante 12 anos sofri a perseguição que o dono da Construtora C. R. Almeida desencadeou sobre mim. Ela começou em 1996, através do também jornalista (e paraense) Oliveira Bastos, Na condição de "coordenador de projetos especiais" da empresa, ele me mandou duas cartas agressivas, tentando me desmoralizar e abalar meu conceito. Tentando me fazer fugir da raia, na qual entrara ao ajudar o advogado Carlos Lamarão a preparar uma ação de anulação e cancelamento dos registros imobiliários dos imóveis em nome da empresa local, a Incenxil, que se tornara de fachada para os propósitos de C. R. Almeida. Oliveira não conseguiu. Ele próprio é que acabou saindo do debate que provocou – e da própria empreiteira, por desentendimentos nada edificantes.
Em 2000, Cecílio ajuizou as duas primeiras ações contra mim na justiça, além de inspirar e emular outras sete demandas, em torno das mesmas questões: a grilagem de terras e a extração ilegal de madeira no vale do rio Xingu. Agia não só de forma ostensiva, como nos bastidores, usando sua truculência, seu poder e seu dinheiro para mexer pauzinhos influentes e mover pessoas contra mim. Graças a essa combinação de métodos, acabou conseguindo minha condenação em um dos seus processos, o de indenização por danos morais (e outra condenação em ação movida por terceiro personagem). A sentença de primeiro grau foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado. Meu recurso aguarda o pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Sobre essa via crucis presto contas no livro O Jornalismo na Linha de Tiro, a quem interessar possa.
A morte do empresário, aos 78 anos, de ataque cardíaco, em Curitiba, no dia 22, significa que ele sai da história. Mas o enredo continuará a ser desenvolvido? É a pergunta que, agora, caberá aos herdeiros responder. Tanto em relação a mim quanto ao Pará. Os meios e modos que Cecílio do Rego Almeida moveu contra mim tinham por motivação a denúncia que fiz, de que ele grilou uma área espantosamente enorme de terras pertencentes ao patrimônio público, no vale do rio Xingu.
Fui condenado por chamar o grileiro de grileiro, com todas as letras, embora tenha provado extensamente a prática do esbulho nos autos de todos os processos que, sob esse título, foram submetidos à justiça. Dentre as inúmeras provas, documentos oficiais, de todas as instâncias do poder público relacionadas às questões fundiárias e criminais. Inclusive do tribunal que me condenou, fazendo – de forma furtiva ou dúbia – com uma mão diferentemente do que com a outra procedia: puniu os serventuários públicos que participaram da grilagem no cartório de Altamira, mas condenou o jornalista que descortinou todo o esquema de apropriação ilegal de terras do Estado. Esquizofrenia processual ou contradição reveladora da própria justiça, cega utilitária, de oportunidade?
Em 12 anos, paguei um preço alto por não me submeter aos caprichos e interesses do homem que queria tornar sua uma área com tamanho variando entre 5 milhões e 7 milhões de hectares na chamada Terra do Meio, que tem a maior concentração de mogno remanescente no mundo. Nunca penetrei na vida privada do cidadão, não trouxe sua família para a contenda, não me preocupei com seus outros negócios. Limitei-me a defender um valioso patrimônio dos paraenses, que não pode ser entesourado por um particular indevidamente. Fui punido por sustentar essa posição e sofri provações durante todo esse período.
Subitamente, morre o autor dessa perseguição, premiada com a punição aplicada ao defensor da causa justa e a premiação do autor ilegítimo, que conseguiu colocar ao seu lado cúmplices dos seus propósitos, muito úteis em certos momentos cruciais, e se beneficiou da omissão geral de uma população que abdica do seu patrimônio, por falta de consciência. Até morrer, contra a verdade e contra o superior interesse coletivo, o vencedor era o empresário Cecílio do Rego Almeida.
Ele não viveu o bastante para ver o fim desse absurdo, com a reposição do que é justo e verdadeiro, se é que esse momento virá a acontecer, ao menos na esfera judiciária (no âmbito do executivo, não resta mais a menor sombra de dúvida quanto à grilagem praticada). Assim, a notícia da sua morte me provocou perplexidade e certa tristeza. Ao contrário do que pode sugerir uma visão simplista, nunca pretendi mal ao empresário nem queria que ele sofresse qualquer infortúnio: ao me colocar do lado da causa pública, minha única pretensão é de que ela acabe sendo a vencedora e não os que a contrariam, conforme, infelizmente, tem sido a regra geral. A retirada de cena do criador e principal responsável por esse assalto ao patrimônio fundiário do Pará só terá um desfecho feliz se os seus sucessores reconhecerem o erro, retificarem seus rumos e seguirem uma nova história, conciliada com a verdade e a justiça.
Essa expectativa talvez seja, mais do que uma utopia, um devaneio de quem continua a achar que certas contas têm que ser acertadas por aqui mesmo, antes que chegue o momento de enfrentar o maior dos mistérios humanos, o único dos problemas filosóficos da nossa existência: a morte e o seu "depois". Para C. R. Almeida, quanto ao capítulo da sua participação na história fundiária do Pará, esse acerto ficou para ser feito "a posteriori". Não é a moral que convém à res pública, mas é a que tem prevalecido, infelizmente.
Poesia de força: a destas orquídeas
O poema de Paulo Vieira "está escrito na memória/ antes mesmo que se gere". Sua poesia é instinto, músculos, artérias, fibras. E é cérebro, faiscações da mente, arquitetura do pensamento. Tudo isso dentro dele até que se torne matéria, tecida com palavras vivas, autônomas, que se explicam na narrativa, fluem na construção verbal, às vezes se ordenam num discurso, freqüentemente contrariam a lógica, surpreendem o sentido, anarquizam o entendimento.
É assim o conjunto de "orquídeas anarquistas", a brilhar no seu terceiro livro, o segundo a assumir a forma impressa, com esse forte e sugestivo título, que mereceu o prêmio de poesia do IAP (Instituto de Artes do Pará), em 2007 e foi lançado no mês passado. É um produto graficamente belo, requintado, de extremo bom gosto, artesanal no seu acabamento paradoxalmente sofisticado. Há a aparência de uma construção formal muito lógica pela precisão de cada item, visual e verbal.
Mas há forças incontroláveis dentro dessa estrutura, uma voz do inconsciente que deve muito de suas origens à poesia simbolista francesa, ao modernismo, ao pós-modernismo, ao português castiço, às velhas canções de amigo, à linguagem coloquial inglesa, à voz áspera das ruas, à melodia das camas. Em uma palavra: ao mundo vivo e pulsante, que o poeta viu, no qual viveu ou que simplesmente imaginou, subvertendo a realidade e a fatuidade (até inventou seu nascimento "em uma das pequenas ilhas sem nome de Abaetetuba – cidade dos brinquedos de Mauritia – afinal, a gente nasce onde bem entende").
O poeta, um verdadeiro homo faber, faz o que quer com as palavras, que lhe são íntimas, plásticas, modeláveis. Seu leitor há de se surpreender agradavelmente ao seguir seus versos e chegar a desfechos como: "a queda/ também/ de voar/ é um jeito". Ou, pela "linguagem das flores", urdida na morte de Haroldo Maranhão, ficar sabendo: "nesta crisantemanhã nenhuma flor se embegônia". Ou, no verso elíptico e poderoso, que vale por mil discursos engajados de revolta pela morte da missionária Dorothy Stang, na pura e irredutível expressão artística:
"horse
(no assassinato de Dorothy)
Esses dias passam de ré
deas"
Orquídeas Anarquistas (IAP, 2007, 76 páginas) é um livro que nasceu clássico sem deixar de ser vanguardista. Poesia das melhores já surgidas em Santa Maria do Grão Pará – e em qualquer parte deste país. Ou do mundo de matérias e signos do poeta e da sua gente..
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