Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
No dia 20 a Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara Federal para investigar o sistema carcerário brasileiro deverá apresentar seu relatório final sobre o caso da adolescente presa na delegacia de polícia de Abaetetuba junto com 20 homens. Durante 24 dias a menor sofreu violências, inclusive estupro. A CPI acusará a então juíza da 3ª vara criminal do município, Clarice Maria de Andrade, de ter sido negligente e assim contribuído para a longa permanência, ilegal, da menor na cela.
A maior prova contra a juíza serão os depoimentos do diretor e da secretária da vara. Em depoimento à CPI, em Brasília, Graciliano Mota e Ana Maria Rodrigues disseram que adulteraram a data e o conteúdo de um ofício à corregedoria de justiça do interior para esconder a demora da juíza no atendimento a um pedido de transferência da presa para a penitenciária feminina, em Belém. Réus confessos, os dois serventuários garantem que foram induzidos à fraude pela própria juíza.
A magistrada se considera vítima de uma conspiração armada contra si pelos dois funcionários da vara, ambos concursados e em atividade há muitos anos. Ela diz que Graciliano inventou a história, com a cumplicidade de Ana Maria, para se vingar da escuta telefônica montada contra ele pela Polícia Federal, com autorização da juíza. Graciliano foi apontado como suspeito de vinculação a uma quadrilha de tráfico de drogas em Abaetetuba. A escuta não resultou em nenhuma prova contra o diretor de secretaria, mas a juíza assegura que isso só aconteceu porque Graciliano foi alertado sobre o “grampo” e pôde evitar se comprometer.
As versões são conflitantes, mas poderiam ser esclarecidas de imediato se o Tribunal de Justiça do Estado não tivesse decidido rejeitar o pedido de inquérito da corregedoria. Diretamente interessada, a juíza podia ter concordado com o procedimento disciplinar-administrativo. Confirmada a sua reconstituição dos fatos, ela se veria livre de qualquer processo e poderia proclamar sua inocência. Numa situação parecida, em outra instância judicial, ela está exercendo o seu direito de defesa.
É na justiça do trabalho, onde tramita contra ela, desde o ano passado, reclamação proposta por Orinéia dos Santos Brito. Orinéia cobra direitos não pagos pela juíza, em cuja residência trabalhou como empregada doméstica. Clarice Maria de Andrade foi condenada em primeira instância a pagar 1,1 mil reais a título de aviso prévio, 13º salário, férias e saldo de salário. O elemento decisivo para a sentença condenatória foi o depoimento da reclamante, que disse ter assinado um recibo em branco e ter recebido apenas 100 réis e não um salário mínimo, como constou no documento. O valor teria sido preenchido posteriormente, sem seu conhecimento.
Na sua decisão, a juíza trabalhista admite que “a relação de trabalho doméstico goza de uma certa informalidade, porém tal característica não pode dar azo a fraudes”, cuja prova “se faz por todos os meios admitidos em direito, notadamente por indícios, conjecturas e presunções (simples)”. Considerou-se convencida de que no caso “estão presentes indícios de fraude no preenchimento do recibo, valendo a velha máxima a apregoar que ‘quem paga mal, paga duas vezes’”.
A juíza Maria Clarice não foi à audiência de conciliação e julgamento na 8ª vara do trabalho, sendo representada pelo marido, que funcionou como preposto. Não concordando com a sentença, recorreu, mas seu recurso não foi aceito porque ela deixou de recolher R$ 62,88, valor da contribuição previdenciária patronal, e por isso a causa foi considerada deserta. Mas ela se insurgiu novamente, através de agravo, para destrancar o recurso ordinário. Sua principal alegação é de que o valor pendente é ínfimo quando comparado com o depósito judicial, que já fez, para garantir os direitos em causa, não permitindo assim a declaração da deserção, e que a reclamante não apresentou prova material do que alegou, nem contraprova em relação à defesa feita. Ao acolher a reclamação nessas condições, a juíza trabalhista teria invertido o ônus da prova.
O processo ainda prosseguirá até decisão final. Por analogia, a juíza Maria Clarice devia rever sua posição no outro processo, no qual também é acusada, o da menor presa em Abaetetuba, para que as provas sejam finalmente produzidas em torno da questão, afastando-se as dúvidas e suspeições que ainda persistem. Se a justiça paraense não fizer essa revisão espontaneamente, terá que fazê-lo por pressão externa, tanto do Conselho Nacional de Justiça quanto da CPI da Câmara Federal. Por motivos mais do que fundamentados.
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