domingo, 18 de maio de 2008

A guerra nas ruas e o jogo de cena

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós

O Liberal iniciou uma campanha contra a violência: deu na primeira página editorial a respeito e vem martelando o assunto em suas colunas. A causa é nobre; seu promotor, nem tanto. O jornal reclama de sete assaltos praticados em sucessão contra seus veículos, exemplo – mais um – da escalada de violência que inquieta e amedronta a cidade. Tem toda razão em cobrar mais resultados das autoridades. Mas qual a contribuição efetiva do grupo Liberal para prevenir e combater a violência? Suas seis páginas de noticiário policial são gasolina – e não água – no fogaréu da criminalidade que lavra em Belém, como no Estado e no país.
Na hora de faturar, o jornal manipula mercadoria e não uma causa. Trata a notícia como simples negócio, que precisa crescer, e não como um elemento fundamental da vida social. Com uma mão maneja o interesse coletivo e com a outra, a destra, a compulsão comercial. Reagiu como porta-voz da opinião pública quando pisaram no seu pé, mas ignora ou sufoca a verdadeira missão que devia desempenhar se de fato fosse o paladino da causa nobre, interpretando e expressando os anseios de todos.
É seu direito – e até seu dever – sair em defesa dos seus funcionários e do seu patrimônio, como qualquer cidadão faria (ou devia fazer) ao ser atingido por um ato de agressão e violência. Mas um jornal não é uma pessoa, nem mesmo um negócio qualquer. O Liberal tinha a obrigação de ver a si não como um caso isolado, mas como um elemento da patologia social. No editorial, o jornal avalia o ultraje como mais grave do que o prontuário cotidiano que reproduz em suas páginas policiais, justamente por ser um veículo de comunicação de massa, cuja influência transcende o tamanho do seu capital (no caso, aliás, inexplicavelmente baixo demais).
Essa condição, entretanto, pode influir para atenuar ou agravar sua situação. Se o jornal é efetivamente um porta-voz da sociedade, a sociedade terá estima especial por ele. Se não respeita esse compromisso, pode acabar se tornando alvo de represálias e de um rancor mal acomodado no inconsciente. Os repórteres esportivos do grupo Liberal já experimentaram bastante dessa reação nos estádios de futebol, por conta de tratamento editorial desastrado dispensado aos clubes, sobre o qual nem sempre – ou raramente – podem influir. A logomarca do jornal, que já impôs respeito, pode agora estar avivando agressividades. Essa é a interpretação alternativa à manifestada pelo jornal sobre os assaltos contra seus veículos. Convinha aos seus donos refletir sobre esse “sinal dos tempos”.
De qualquer maneira, a campanha, se não for apenas mais um item no jogo de pressão exercido sobre o governo, capaz de refluir se houver acerto entre as partes sobre a cota de publicidade, pode servir para forçar as autoridades a sair da frente de espelhos viciados. O secretário de segurança (a designação que subsiste debaixo da denominação de “defesa social” dada à secretária, por mera retórica) já disse que, não havendo crime organizado em atividade na cidade, a polícia está perdendo a guerra para bandos de marginais pés-de-chinelo.
É esse criminoso primitivo que atormenta todos os dias a vida do cidadão e que escapa incólume à vigilância policial depois de praticar toda sorte de delitos, a maioria deles já às claras. Belém se tornou um vasto campo de batalha. A soma das pequenas escaramuças, atingindo pessoas isoladas, mas que contribuem para uma soma expressiva de incidentes, criou um estado de pânico coletivo.
Mesmo que não seja exatamente assim, não deixa de ser mais ou menos assim. O problema é que esses bandos de rebeldes primitivos (para usar a expressão de Eric Hobsbawn) saem todos os dias para exercer seu ofício e voltam com produtos do saque, repassado aos nefandos (e incólumes) receptadores ou negociado diretamente em mercados abertos à pilhagem. Os circuitos da criminalidade se expandem e se sofisticam em Belém. A cidade está se acostumando a eles, mas essa rotina não exclui seu caráter de violência, que pode resultar em mortes.
A banalização apenas camufla o agravamento da doença. Belém se tornou uma das cidades mais violentas do país. Se os criminosos são rústicos e não formam organizações poderosas, é porque, em função da condição de vida da esmagadora maioria da sua população, Belém é uma das capitais mais pobres e precárias do país. É preciso ser generoso para não dizer que, com seu porte, não há nenhuma pior no Brasil.
O secretário tem razão num ponto: seria mais fácil combater esse tipo de criminalidade se houvesse maior vontade de agir com eficiência para combatê-la, e não apenas encarando-a pela ótica do fato criminal. Mas para isso seria preciso que os atores participassem da cena com sinceridade e disposição, a começar por personagens mais influentes, como o jornal O Liberal.

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