Manuel Dutra*
Do Site Pará Negócios
Este artigo, ou crônica, eu publiquei no dia 2 de novembro (coincidência de data?!) de 2005, no Diário do Pará. Como na Amazônia as recorrências são uma desgraça, tudo se repete – os dramas humanos se atualizam, mas não desaparecem – resolvi republicá-lo, como se o fato aí descrito e comentado não fosse diferente dos naufrágios mais recentes ao longo dos nossos rios. A seguir, o texto original:
E eu nunca tinha usado salva-vidas ...
Foi no dia 7 de julho do ano passado, às 11h20, entre Juruti e Parintins, ali pelos limites do Pará com o Amazonas. Foi a primeira vez que encarei a indesejável necessidade de fazer alguma coisa de imediato para não morrer. Interessante que não entrei em pânico e, quando tomei consciência de que precisava de um salva-vidas, só restavam três peças perto de mim. Peguei uma ao mesmo tempo em que outras mãos em desespero agarravam as outras.
Foi também a primeira vez que me vi dentro de uma situação a que só assistira em filmes, ali dentro daquele mini-Titanic adernando depois de bater num banco de areia, a plena velocidade de 28 milhas por hora, quatro a cinco vezes mais veloz que um barco convencional.
É uma dessas lanchas modernosas, chamada “Dona Regina”, levando 180 passageiros e 11 tripulantes, acomodados no salão principal e nos dois outros salões menores acima e abaixo do maior.
O piloto errou o caminho e, em vez de seguir pela margem direita do rio Amazonas em direção a Parintins, entendeu de disparar para a imensidão daquela baía amazônica, uma das partes mais largas do grande rio. Larga e necessitando de tripulantes que conheçam as armadilhas de seus escassos canais.
Com outras pessoas, ajudei a segurar as pernas de uma mulher que se jogava por uma janela e, com outros dois passageiros, começamos a gritar para as pessoas se afastarem do lado da lancha que estava a um palmo de ser tomada pela água.
Começaram a se movimentar para o centro do salão e a “Dona Regina” parou de adernar. Aí percebemos pratos quebrados, pessoas caídas no chão liso pela comia esparramada, gente ensangüentada, desmaiada, desespero.
Para mim, tudo aconteceu quando eu acabava de entregar o prato do almoço ao comissário (carrinhos no corredor, ar condicionado, como nos aviões) e apanhara o livro de Armand Mattelart, “A globalização da comunicação”, para continuar a leitura. Após o sufoco maior, por alguma razão, deixei de lado a página antes marcada e comecei a ler o livro de trás para a frente, quando Mattelart se reporta a Voltaire e aos iluministas. O trecho é este: “Um dia tudo estará bem, eis a nossa esperança. Tudo está bem agora, eis a nossa ilusão!”. E li as últimas letras do último parágrafo: “Nossa esperança deve abandonar qualquer possibilidade de salvação. É por isso que prefiro falar em esperança trágica”.
Sem botar essa coincidência na conta da metafísica, indago a quem de direito (a quem, mesmo?) até quando os ribeirinhos da Amazônia continuarão assujeitados à irresponsabilidade e à não-punição de quem os mata nos rios como, mais uma vez, aconteceu com os passageiros do “Almirante Sergiomar”, no dia 30 de setembro passado, novamente perto de Parintins?
Na “Dona Regina”, muitos passageiros não conseguiram salva-vidas, porque essas peças estavam em sacos fechados no porão de carga. O grave acidente foi comunicado às Capitanias de Santarém, Parintins e Manaus, e o barco continua navegando sem que se saiba de alguma investigação.
Será que os pobres da Amazônia, necessitados do vital transporte fluvial, terão mesmo que “abandonar qualquer possibilidade de salvação?”, permanecendo ad aeternum na tragédia de uma esperança sem fim?
PS: 1) Ao chegar a Parintins, procurei a mídia e solicitei a um conhecido que telefonasse para a tal de Capitania dos Portos, em Manaus, relatando o fato. Ao que eu saiba, a “Dona Regina” continuou, ou continua (nunca mais o vi por nunca mais ter andado pelos rios) navegando. Só teria sido motivo de inquérito e notícia em rede nacional se tivesse tido muitos mortos e desaparecidos.
2) Desde a saída do porto de Santarém eu percebi que o piloto era um sujeito muito jovem e inexperiente (já naveguei por estes rios desde há décadas e, mesmo não sendo piloto, sei como não sê-lo). O piloto permitiu que a sala de comando, cheia de equipamentos, fosse invadida por dezenas de passageiros curiosos. O jovem piloto, em vez de prestar atenção para as regras de navegação, conversava e se entretinha com os passageiros, como se não estivéssemos dentro de uma bolha veloz, sobre um rio que exige muito preparo técnico e experiência de quem comanda embarcações.
3) As coisas mudaram de lá para cá? A repetição dos fatos diz que não. E as tais de Capitanias para que servem? Se tivessem mudado, os naufrágios e as centenas de mortes não estariam se repetindo. Mas ... como quem navega pelas beiradas dos nossos rios não usa gravata.... Se fossem passageiros como os do avião da TAM, em Congonhas, alguma medida seria tomada. Como parece estar sendo, no setor aéreo, onde viaja gente branca e de bens, especialmente entre Porto Alegre e São Paulo. Entre Santarém e Manaus, o que isso significa para motivar a ação do poder público e da “grande” mídia nacional?
* Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário