Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
As ditaduras fertilizam o que há de pior no gênero humano. Entronizado o ditador e formada a estrutura que lhe dá suporte, revelam-se por inteiro os caracteres. Infelizmente, as virtudes, que exigem coragem, determinação e princípios, são sufocadas. Desenvolvem-se os instintos ruins, como o medo, a covardia, a subserviência e a violência. O ser humano sofre tanto sob as ditaduras que tudo faz para não passar novamente pela má experiência. Mas os parasitas e predadores estão sempre a buscando, insuflando-a e procurando reeditá-la.
A melhor maneira de imunizar a sociedade contra essa recaída na prática antidemocrática é contar a história verdadeira das tiranias. De todas delas, independentemente de sua moldura ou confeito ideológico. Todas se parecem na repressão aos mais nobres valores humanos, a começar pela liberdade, sem a qual os tão distintos e diversos seres humanos não podem conviver civilizadamente, humanamente.
Oswaldo Coimbra tem dado contribuição positiva à história do Pará ao procurar checá-la nos documentos originais. Às vezes resvala por uma interpretação pessoal indevida, mas a publicação dos seus trabalhos de pesquisa possibilita uma polêmica esclarecedora a respeito de certos episódios polêmicos da agenda estadual. A morte de Benedicto Monteiro lhe serviu de pretexto para relembrar um dos episódios mais infames da vida política paraense. Benedicto era perseguido nas matas de Alenquer, onde se refugiara, pelos centuriões da nova ordem, que em 1964 rompera a continuidade constitucional do país, iniciada em 1946, ao fim do Estado Novo de Getúlio Vargas.Foi justamente então que ele foi apunhalado pelos seus pares na Assembléia Legislativa.
A aprovação da cassação do mandato equivaleu ao polegar para baixo do público do Coliseu romano para liquidar o refém na arena, submetido ao gladiador. Todos os 34 deputados presentes àquela sessão do dia 14 de abril extirparam do ex-líder do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) as garantias do seu mandado político, que o povo lhe conferiu através da eleição. Entregaram sua cabeça na bandeja, como um novo João Batista. E por proposta de um correligionário e liderado dele, o também petebista João Reis.
Adversários viscerais, que apoiavam a perseguição a todos os comunistas, como imaginavam ser Benedicto Monteiro, ainda tentaram uma contemporização. José Maria Chaves questionou a competência do legislativo estadual para fazer a cassação (um dos poderes excepcionais do Comando Supremo da Revolução, conferido pelo primeiro ato institucional do novo regime, que devia ser primeiro e único, mas gerou uma sucessão de instrumentos de força para-legais ou completamente ilegais). Gerson Peres propôs o cumprimento do rito processual, com abertura de prazo para a defesa do processado.
Mas tudo, dos formalismos aos conteúdos, foi atropelado para que de imediato a cassação se consumasse, à unanimidade. Inclusive com o voto de quem, depois, experimentaria do mesmo veneno, como o deputado Hélio Gueiros. Líder da maioria, ainda pessedista, Gueiros disse que a Assembléia agia com acerto ao eliminar dos seus quadros “um elemento que não escondia sua crença na ideologia comunista e, portanto, subversiva ao regime democrático”, conforme o registro da sessão no jornal O Liberal, que era o órgão oficial do PSD e que tinha em Gueiros um dos seus principais quadros. Coimbra recorreu a essa fonte porque a ata da nefanda sessão foi destruída.
Os vencedores – e mesmo os perdedores, que não perderam todo poder anterior – estão sempre empenhados em reescrever as histórias, sobretudo aquelas nas quais tiveram participação, para moldá-las aos seus interesses e conveniências. O poder do baratismo, que Magalhães Barata construiu em torno do Partido Social Democrático e de sua figura caudilhesca, tinha alicerces podres, construídos à base de fisiologismo, compadrio e patrimonialismo, na promiscuidade entre a sociedade política e a sociedade civil.
Com artifícios e conchavos, os baratistas tentaram ajustar essa estrutura do passado à nova organização chefiada pelos militares, sob o comando do coronel Jarbas Passarinho. Foram peças fundamentais para a engrenagem que deu aparência de normalidade à subida de Passarinho ao poder, através de eleição indireta, pela Assembléia Legislativa, ainda controlada pelos pessedistas.
Os baratistas não perceberam que, nessa primeira legião de militares no poder, havia “anfíbios”, como Passarinho, bem adestrados pela convivência com as “raposas” da política brasileira, que usavam e abusavam do estoque de truques do populismo. Consolidado seu poder, os militares trataram de se livrar da proximidade incômoda e pôr em prática seu discurso moralista, que havia de acabar com as raízes podres do regime anterior, dentre elas o contrabando, o jogo do bicho e a venda de favores oficiais.
O Catão de ontem se tornou o proscrito do dia seguinte. Sempre que podem, porém, esses personagens reinventam seus papéis, contando histórias que não coincidem com os registros da época em que os fatos ocorreram. Trabalhos isolados, como o de Oswaldo Coimbra, reaquecem a velha máxima do jornalista Batista Campos, de dar nomes aos bois e dizer, sem rodeios, o que eles foram e fizeram. Assim, o presente se reconcilia com o passado e torna-se possível um futuro menos viciado, com uma moral menos imoral do que a regra geral dessas histórias: ganha quem pode mais. Inclusive mentir.
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