Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
Juiz que fala publicamente sobre processos nos quais funciona se torna passível de suspeição. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, violou essa regra elementar do direito: criticou com dureza o comportamento do presidente do inquérito policial que, transformado em denúncia pelo Ministério Público e acolhido pelo julgador de primeira instância, estava pendente de sua deliberação. Mas não ficou nisso: Gilmar Mendes ignorou as instâncias intermediárias do recurso e julgou o habeas corpus que lhe foi apresentado diretamente, em favor do banqueiro Daniel Dantas. Ao rechaçar a segunda ordem de prisão contra o complicado proprietário do banco Opportunity, enviou seu despacho para o Conselho Nacional de Justiça, do qual é presidente nato na condição de presidente do STF, numa pressão indireta – mas nada sutil e menos ainda aceitável – contra o juiz da instância inferior. O ministro teria o mesmo comportamento se quem estivesse em causa fosse um João da Silva?
Mendes e o juiz Fausto de Sanctis bateram boca fora dos autos, aos quais deviam se circunscrever suas manifestações sobre o rumoroso caso. O magistrado foi condescendente com os evidentes abusos de função do delegado Protógenes Queiroz, presidente do inquérito na PF de São Paulo. Ambos partilhavam o entendimento de que seus superiores iriam favorecer o rico personagem principal de uma trama que remonta a quatro anos e por isso deviam conduzir apurações independentes e excessivas.
As escutas foram exageradas e descontroladas, das investigações participaram agentes não autorizados, como os da Abin, o órgão de inteligência que substituiu o nefando SNI, e o que devia ser uma apuração técnica (de grande envergadura dada a sofisticação dos muitos crimes financeiros e funcionais cometidos) se confundiu com um discurso político. Distorção, de resto, quase inevitável em função dos interesses políticos e pessoais envolvidos em toda a trama.
Por esses e muitos outros episódios, o “caso Daniel Dantas” é um retrato pungente e dramático de um amplo compartimento do poder no Brasil. O enredo não deixa dúvida: não há mocinhos na história. Mesmo os que se apresentam como paladinos da verdade, do direito e da justiça escondem suas verdadeiras identidades – ou sofrem de dupla personalidade, para não ir mais fundo na verificação da pluralidade das máscaras que usam. Já os bandidos são muito mais perigosos do que aparentam suas faces, trabalhadas por uma espessa camada de glamour de marketing e relações públicas. Tudo à custa de muito dinheiro, dinheiro esse que jorra por dutos clandestinos, cravados sob o solo podre do país, incapaz de proporcionar a renda de que necessita sua população trabalhadora e legalista para ser feliz. Porque essas ervas daninhas e seus predadores se apoderam da riqueza natural com seus métodos de sedução e corrupção.
Ao final da leitura de milhares de papéis, a sensação que fica é a de desamparo. O Brasil continua sem dispor de uma espinha dorsal no setor público e nas instituições privadas capaz de bem defender os cidadãos com o uso da lei para combater os seus aproveitadores e manipuladores. Mesmo as fachadas mais imponentes não conseguem cumprir sua missão porque entre o texto das normas e sua aplicação há a interferência de compromissos com grupos e pessoas, com um projeto de poder que só se consolida porque favorece uma minoria e exclui a maioria. Estamos a contemplar a mais uma crise brasileira, não se sabe exatamente de se crescimento ou de necrose.
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