segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A justiça do Pará posta em questão

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e Articulista de O Estado do Tapajós

O ano de 2002 foi decisivo na vida de Ana Tereza Sereni Murrieta. Primeiro, aos 62 anos, ela alcançou o ápice de sua carreira, 37 anos depois de iniciá-la como juíza no interior: foi promovida a desembargadora pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará – e por merecimento. Mas exerceu o cargo por pouco tempo: ao saber de uma queixa-crime proposta contra si pela OAB do Pará, Murrieta pediu sua aposentadoria – e a obteve: foi para casa com direito a mais de 20 mil reais por mês.
Podia ter a partir daí uma vida tranqüila se o processo judicial instaurado não provasse que ela se apropriou do dinheiro depositado em nome da justiça por pessoas que litigaram perante a 1ª vara cível do fórum de Belém. Sem se importar com os seus jurisdicionados – órfãos, interditos e ausentes – a magistrada retirou 1,6 milhão dos 3 milhões de reais das contas sob sua jurisdição, através de terceiros ou diretamente na agência bancária onde o dinheiro estava depositado, à espera da decisão das causas em litígio.
Como os fatos da apropriação indébita – ou peculato – foram comprovados inquestionavelmente, a defesa da desembargadora aposentada teve que apelar para um ardil: provar que Murrieta não tinha o domínio dos seus atos ao fazer os saques. Obviamente, a insanidade mental da acusada não foi provada: ela praticou o extravio ao longo de sete anos, sem que, nesse período, houvesse qualquer suspeita sobre a sanidade do seu comportamento público (extravagante, às vezes, mas não aberrante).
Na semana passada, o juiz Pedro Pinheiro Sotero, da 5ª vara penal da capital, condenou-a a 13 anos e quatro meses de prisão, em regime fechado, além do pagamento de multa de R$ 145 mil reais, a ser recolhida 10 dias após a intimação da sentenciada.
A decisão é histórica. O juiz foi tolerante por um lado: não acolheu os pedidos da promotoria pública para o seqüestro dos bens de Murrieta, por não ter encontrado nos autos prova da existência de bens móveis, sobretudo jóias, que a magistrada teria adquirido com o dinheiro dos depósitos judiciais. Também não aceitou decretar a perda do cargo porque a punição só é aplicável aos servidores da ativa. Rejeitou, por fim, enquadrar a ex-desembargadora por 157 vezes em crime de peculato, conforme o número de retiradas por ela efetuadas na agência do Banpará. Tal enquadramento resultaria em pena mínima de 314 anos e máxima de 1.099 anos, o que afrontaria a dignidade da ré, que o Código Penal procura preservar.
Mas o juiz Pedro Sotero foi determinado na aplicação da pena que impôs na sentença: a condenada terá que cumprir os 268 meses de prisão em regime fechado, por ser necessário “assegurar seu afastamento do convício social”. Se a pena começasse a ser executada no próximo ano, a magistrada ficaria na cadeia até os 82 anos de idade, no caso de cumprimento integral da sentença, o que dificilmente ocorrerá diante dos abrandamentos previstos em lei. Mas, pela primeira vez, um representante da mais alta magistratura do Pará irá para trás das grades.
Não há como condescender à sorte da desembargadora Tereza Murrieta: ela cometeu de forma consciente um ato nefando, do ponto de vista pessoal, e de grave repercussão social, que abalou a credibilidade da justiça perante a opinião pública. A sentença que a condenou foi tão serena e consistente que à defesa restará apenas se insurgir contra o regime fechado da prisão e à acusação, se for o caso, por considerar “branda” a deliberação, insistir em punição mais dura, porém apenas no sentido de carregar nos efeitos morais da penalização.
O processo de aplicação conseqüente da justiça, contudo, já sofreu um ligeiro desvio de rumos: na condição de presidente em exercício do TJE, a desembargadora Maria Helena Ferreira acolheu pedido de habeas corpus da defesa de Murrieta e decidiu que ela responderá ao processo em liberdade, suspendendo a execução do mandado de prisão, expedido pelo juiz de 1º grau (que pôde deliberar sobre o processo porque, aposentada, a desembargadora perdeu o foro especial a que teria direito se ainda estivesse na ativa).
Nada há demais na decisão, que está perfeitamente no âmbito deliberativo da relatora do pedido. Mas a concessão do HC pode ser a primeira manifestação concreta do desejo do tribunal de rever a decisão de primeira instância não pela análise isenta do conteúdo dos autos, a partir dos quais é impossível não concluir pelo dolo da acusada, mas por espírito de corpo.
Na condenação de Murrieta está implícito certo grau de culpa da cúpula do judiciário paraense. Todos os desembargadores do tribunal ignoravam o procedimento ilegal de sete anos da titular da 1ª vara cível do fórum de Belém, de sacar nas contas sob sua responsabilidade, inclusive comparecendo pessoalmente ao caixa da agência bancária? A movimentação aconteceu não uma nem 10 vezes, mas em 157 ocasiões. Nunca a boataria que circulava pelos corredores forenses chegou aos ouvidos da alta magistratura estadual? Ou será que o diz-que-diz não teve tanto impacto porque esse procedimento não era exclusivo da juíza Murrieta, que apenas podia estar agindo de forma mais desenvolta do que outros magistrados, ou mesmo servidores públicos?
De qualquer maneira, agiu com correção o TJE ao promover por merecimento uma juíza em torno da qual havia uma névoa de dissensões e suspeições quanto ao seu procedimento jurisdicional? Nenhum dos questionamentos foi absorvido e incorporado à sua ficha funcional? Surpreendentemente, os assentamentos de Tereza Murrieta eram exemplares, como imaculadas se encontravam as fichas de juízes anteriormente promovidos por merecimento ao desembargo, apesar de suas carreiras temerárias, por envolvimento público com fatos polêmicos, ou abertamente irregulares ou ilegais.
Parece que nem o súbito pedido de aposentadoria influiu no ânimo de desembargadores dispostos a ser mais tolerantes do que o aceitável para com os desvios de conduta da nobre colega. Murrieta acabou sendo favorecida por um erro cometido em 2005 pelo então presidente do TJE, desembargador Milton Nobre. Ele ignorou a determinação legal do juiz natural para funcionar no caso, que devia ser escolhido por sorteio. Quando apenas três magistrados se declararam suspeitos (em 19 alternativas possíveis), Milton Nobre designou um juiz especial para o feito.
Paulo Jussara rapidamente concluiu a instrução e condenou Murrieta (em sentença considerada “amena” pelo Ministério Público do Estado), mas o Superior Tribunal de Justiça anulou o processo, pela violação do princípio do juízo natural, fazendo-o voltar ao ponto de partida. O novo juiz responsável pela ação, Pedro Sotero, determinou a prisão da desembargadora, mas logo ela foi solta por ordem superior. E aí pode estar um dos fatores para que o processo acabe prescrito, em função dos recursos protelatórios que vierem a ser usados pela defesa e da lentidão da sua tramitação.
O episódio se repete agora, mas espera-se que tenha sido apenas uma divergência de entendimento processual e não o início de uma revisão por inteiro da sentença de 1º grau, bem fundamentada no conteúdo dos autos. Se for assim, mais do que a desembargadora Tereza Murrieta, estará em causa o judiciário do Pará: ele se disporá a cortar na própria carne para cumprir seu dever ou falará mais alto aos seus ouvidos o canto de sereia do espírito corporativo?

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