quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O leão da Receita Federal é meio vesgo na Amazônia

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós



José Tostes Neto provavelmente foi o superintendente que por mais tempo esteve à frente da 2ª Região Fiscal da Receita Federal, a maior e mais complexa do país. Durante os quase 15 anos em que se manteve no cargo enfrentou ameaças à sua integridade física, "tentativas de intimidações, representações, acusações falsas, calúnias, injúrias, difamações (todas repelidas através de processos judiciais), queixa crime e estratégias sórdidas para tentar desmoralizar-me". Ao transmitir a função ao seu sucessor, no mês passado, porém, podia apresentar resultados quantitativos e qualificativos atestando que enfrentou e superou as barreiras para cumprir sua missão.
No período em que foi superintendente, a arrecadação da Receita Federal na Amazônia cresceu 674%%, contra a média nacional de 595%%, um desempenho 79 pontos percentuais acima da arrecadação total do Brasil. Este seria apenas um número se não houvesse uma história para explicar como ele se tornou possível. Na solenidade de transmissão do cargo, Tostes disse ter em seu poder, como um trunfo, inúmeros documentos sobre todas as reações que precisou enfrentar em defesa da renda pública. Dentre esses documentos há a cópia de um inquérito instaurado pela Polícia Federal no Amazonas, em 2003, para apurar um esquema de tráfico de influência "que utilizou serviços profissionais de lobistas com dois objetivos: o primeiro era desacreditar-me e conseguir minha exoneração do cargo de superintendente; o segundo era garantir a nomeação para os cargos de comando da Receita Federal na 2ª Região Fiscal de pessoas comprometidas com o esquema que pretendia movimentar ilegalmente mercadorias nos portos da região em montante, segundo peças desse inquérito, de R$ 10 milhões mensalmente".
O esquema descoberto - lembrou Tostes - "oferecia vultosa premiação em espécie para quem conseguisse viabilizar seus objetivos". O manuseio desse processo, "onde desfilam personagens ilustres da elite política e econômica de nosso país", revelará, a quem o consultar, "um panorama decepcionante sobre os valores éticos condenáveis que movem as ações dessas pessoas, que tanta influência e poder exercem na vida do nosso país", garantiu o ex-superintendente. Ele não tem dúvida de que "serão necessários muitos anos de trabalho em educação fiscal para que a nossa sociedade possa tomar consciência do quão perniciosas são essas práticas e passe a agir contra elas".
Para Tostes, não foi surpresa, "depois que esses fatos foram descobertos e desmascarados seus personagens", aparecerem, pouco tempo depois, alguns deles mesmos "flagrados num dos maiores escândalos de nosso passado recente, o famoso caso do 'mensalão', tendo que vergonhosamente renunciar aos seus mandatos políticos para não serem cassados ou serem exonerados de suas funções".
Ele não citou outros dois episódios também marcantes. Um deles se relacionou com a aprovação do tristemente famoso projeto da Usimar, durante reunião do Conselho Deliberativo da Sudam, em São Luís do Maranhão, em 2002. O então governador de Mato Grosso, Dante de Oliveira, apresentou queixa-crime contra Tostes, justamente o único dos conselheiros contrário à aprovação do projeto, sobre o qual pesavam denúncias de prevaricação. Era uma ousada tentativa de inverter a verdade e deslocar o foco do fato principal, que acabou não dando, graças à persistência de Tostes. O Ministério Público Federal denunciou a aberração, que contribuiu para a extinção da Sudam, A ação civil pública, porém, continua engavetada no Supremo Tribunal Federal, à espera de julgamento. Provavelmente o crime prescreverá.
O segundo episódio foi a aplicação à Mineração Rio do Norte da maior multa que uma empresa já sofreu no Brasil. A MRN, uma das maiores produtoras de bauxita do mundo, estabelecida em Oriximiná, reduziu em 30% o seu capital sem considerar que parte dele foi resultante da colaboração financeira do governo federal, que lhe concedeu incentivos fiscais. Como não foi consultada, a Receita Federal autuou a mineradora, que precisou depositar em juízo um grande valor. O processo tramita no Tribunal Regional Federal da 1ª região.
Ao repassar essas experiências, Tostes admitiu sua surpresa "ao constatar como foi possível enfrentar tantos combates e resistir a todos eles". Mas também estava convencido "de ter valido a pena passar por esses dissabores, pois os resultados compensaram". Ainda assim, não podia deixar de "constatar com inquietação" que a Amazônia "continua a receber um tratamento incompatível com sua importância e seu potencial de desenvolvimento. Sabemos que ela não representa problema, como equivocadamente muitos imaginam, mas sim solução para inúmeras questões nacionais.
Por desconhecimento e por diversas outras razões, são definidas políticas públicas e adotadas decisões inteiramente equivocadas em relação aos anseios e necessidades da região".
No seu pronunciamento, Tostes apontou "alguns exemplos desses equívocos" da política tributária nacional, que merecem ser considerados na íntegra, porque dificilmente aparecem de forma tão clara e incisiva. Disse ele:
"- Como entender e muito menos aceitar como racional a concessão de incentivos fiscais para a extração dos recursos naturais que representam as maiores riquezas da região? Alguns desses recursos são de qualidades inigualáveis a nível mundial e assistimos sua exploração desenfreada ser feita à custa de renúncia fiscal e sem que a região receba uma justa recompensa pela extração desses recursos.
- Como é possível tolerar a criação de mais áreas de livre comércio, como a de Boa Vista/Roraima, que está em vias de ser regulamentada? Quem aqui vive sabe perfeitamente que essas áreas foram concebidas no passado dentro de um cenário de economia fechada inteiramente diverso da realidade de hoje e que elas são muito mais instrumentos de fraudes, outros ilícitos tributários e aduaneiros, de geração de distorções econômicas e até mesmo de proselitismo político do que efetivamente uma estratégia para promover desenvolvimento regional.
- Como explicar a existência da Zona Franca de São Paulo? Algumas das senhoras e senhores irão perguntar. Mas não seria Zona Franca de Manaus? Não, é isso mesmo. Zona Franca de São Paulo. Explico melhor.
A distorção é tamanha que, pasmem, na criatividade ilimitada em inventar incentivos, sob pretexto de favorecer a região, existe hoje um conjunto de incentivos fiscais maior para a produção fora dela do que propriamente para geração de emprego e renda na própria região.
No conjunto de incentivos fiscais estabelecidos para a Zona Franca de Manaus, com o intuito de proporcionar condições melhores de preço às indústrias e ao comércio em geral naquela área incentivada, foram concedidos benefícios fiscais aos fornecedores de outras regiões do país que comercializassem produtos para Manaus, equiparando tal operação a uma exportação brasileira para o exterior. Com isso, qualquer indústria de outra região, quando vende seus produtos para a Zona Franca de Manaus, tem direito a mais incentivos do que se estivesse produzindo na própria Zona Franca de Manaus.
Como preponderantemente as empresas industriais que vendem para a Zona Franca de Manaus estão localizadas em São Paulo, esses incentivos são conhecidos como incentivos da zona franca de São Paulo.
Posteriormente, alguns desses benefícios foram estendidos para as vendas efetuadas não só para a Zona Franca de Manaus, mas também para toda a Amazônia Ocidental e para as Áreas de Livre Comércio.
Na verdade, hoje, eles estão inteiramente desvirtuados e não mais atendem aos objetivos que levaram as suas criações. Esta convicção manifesta-se principalmente pelos seguintes aspectos:
1) Empresas localizadas fora da região incentivada têm mais incentivos do que as que estão dentro na região, o que se constitui num absurdo, pois é a política de incentivos praticada às avessas. Com essa política, a região mais necessitada jamais terá um parque industrial ou comercial que lhe proporcione condições de desenvolver-se, e estará condenada a ser uma eterna consumidora das regiões mais desenvolvidas.
2) A esperada redução de preço com a desoneração tributária, que proporcionaria melhores condições para a aquisição dos produtos na região incentivada não ocorre na prática, pois os fornecedores não vendem seus produtos mais baratos, o que significa que o incentivo se traduz em maior lucro para eles. É uma inversão completa de um dos objetivos pretendidos com o incentivo que seria promover desenvolvimento nas regiões mais carentes e diminuir as desigualdades regionais. Na verdade, está tendo efeito contrário, pois concentra mais renda e riqueza nas regiões mais desenvolvidas. Já ocorreu o inacreditável de produtos serem vendidos mais baratos sem incentivo do que com incentivo fiscal, provocando o envio de consulta à nossa Superintendência por uma entidade de classe empresarial indagando se poderia renunciar aos incentivos de seu Estado para poder comprar mais barato seus produtos.
3) O mecanismo tem propiciado condições para inúmeras fraudes, pois pela dificuldade de controle, e pela estrutura inadequada de fiscalização, inúmeras mercadorias são faturadas para a região e aqui nunca chegam sendo desviadas para comercialização no restante do país, representando uma elevada sonegação de tributos".
Tostes citou "duas observações muito pertinentes", feitas pelo tributarista Vasco Guimarães, da União Européia, durante um seminário sobre a nova proposta de reforma tributaria, em análise pelo Congresso, que "deveriam ser assimiladas por aqui".
A primeira é sobre a incrível incapacidade que o Brasil tem demonstrado para unificar sua tributação, criando uma tributação única sobre o valor agregado, capaz de pôr fim à guerra fiscal perniciosa praticada por seus Estados. Essa impotência é tanto mais grave por ser o Brasil um país que tem uma única língua e poucas diferenças culturais significativas. Já a União Européia alcançou esse objetivo, mesmo sendo formada por 26 países, com 16 línguas e culturas muito distintas, que geram conflitos históricos, inclusive guerras.
A segunda observação diz mais respeito à Amazônia em particular. É sobre a inadequação de política de desenvolvimento e de diminuição de desigualdades regionais, promovida através de incentivos fiscais, por meio de desoneração tributária. O melhor seria seguir o exemplo da União Européia, "através da política de gastos, com a criação de fundos regionais promotores de desenvolvimento que possam financiar projetos e onde somente os melhores projetos recebem recursos.
O Brasil custa e teima em não aprender essa lição, pois para cada problema que o país tem que enfrentar uma das primeiras propostas de solução quase sempre é a criação de incentivos fiscais".
Com base na sua experiência de 26 anos de trabalho na Receita Federal, Tostes aprendeu que, criado um incentivo fiscal, "surge imediatamente ou quase que simultaneamente a fraude, o desvio de finalidade, e as distorções, que provocam desequilíbrio econômico". E se cobrar tributos não é uma tarefa fácil, controlar a renúncia fiscal e os incentivos fiscais "é muito mais difícil, trabalhoso e complexo. E o pior, pouco valorizado e muito cobrado". Por isso, as palavras do superintendente que deixava a Receita depois de tanto tempo no cargo e tantos problemas foram solenemente esquecidas.

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