sexta-feira, 14 de novembro de 2008

A sangria dos jornais continua desatada

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista e O Estado do Tapajós


Apenas algumas pessoas físicas reagiram até agora à campanha contra o sensacionalismo do noticiário de polícia dos grandes jornais diários. Nenhum representante de instituição se manifestou. Devem achar que não têm nada a ver com a questão. Também nenhum jornalista, pessoalmente ou no exercício de representação da categoria. As empresas jornalísticas não mudaram o modo de proceder. Há uma razão forte para esse comportamento: a concorrência entre os dois grupos. O Diário do Pará conquistou uma fatia do mercado de anúncios classificados, antes engolido quase totalmente por O Liberal. Quem lê os pequenos anúncios do Diário vai direto às páginas de crimes - e vice-versa. Como sentiu a facada, O Liberal - e também o Amazônia Jornal - reage tentando reconquistar ou conquistar o leitor - perdido ou ainda não encontrado. Se estão abusando da exploração comercial do sangue dos outros, não interessa: precisam dessa transfusão, devidamente "cifronizada".As páginas de polícia são o espaço que cabe ao povão nos grandes jornais. Ele que as leia como se estivesse diante das colunas sociais, o espaço dos bacanas.
Um cidadão reagiu: o poeta Paulo Vieira, que mandou o texto reproduzido a seguir, debaixo do título "Sanguinolência News".
Num jornal da cidade. Foto de primeira folha: Um cara morto, nu, ensangüentado, amarrado a um poste da iluminação pública, com o verbo duro escrito sobre a cabeça mutilada 'ESTRUPADOR'. Olhei bem pra cara do cara na manchete, e sua fotinha, de cabelos penteados, na carteira de identidade, com os dentes ainda inteiros, reproduzida a um canto do jornal. Mas não foi sequer um espanta sono para o dia do belenense. O mané foi linchado e esfolado, me disse o porteiro do prédio. E de repente notei que tem muito repórter policial por aí. Uns quantos. São anônimos e sabem sempre o que renderia uma boa primeira página. A imprensa os desconhece, mas eles conhecem a imprensa, compram o jornal de manhã, dormem sonhando com terçados, tripas espalhadas na piçarra, mulheres com os peitos arrancados, ratos roendo pedaços de cérebro horas depois de um acidente. O leitor por estas bandas é um repórter profissional e perverso. Planeja tudo o que vai encontrar pela manhã na banca do seu João repórter jornaleiro. Confirma cada litro de sangue espalhado pela madrugada fértil, com um cafezinho no bico. As senhoras repórteres se distraem de passagem. Os meninos repórteres indo para a escola estancam em frente à banca, e um aponta a foto dizendo ao irmão olha aqui, se você ficar me enchendo na sala de aula, vou te deixar igual a esse aqui, e ambos caem na gargalhada e a mãe repórter ri junto. O motorista repórter de ônibus dá uma paradinha na banca ô seu João, muita carne hoje? e seu João repórter jornaleiro balança a cabeça assinalando um sinistro sim. Estou cercado. São todos repórteres e toda notícia é fria. Quêde trauma e nervosismo? Quêde espanto de manhã? A notícia é recebida pelos repórteres leitores com tédio. Todos teriam uma versão ainda mais cabeluda para contar. O flanelinha repórter propõe uma reconstituição mais sangrenta, a atendente repórter da farmácia pensa em tortura com tarja preta, o açougueiro repórter (esse duas vezes açougueiro, ou duas vezes repórter?) planeja um esquartejamento detalhado, no maior número de pedaços possível, coisa de guinnes. Vejo maus repórteres e repórteres maus por todos os lados. Por onde ando me sinto assaltante e assaltado, assassino e assassinado. E mais tarde a noite me cobrirá com seus coágulos de sangue enormes.

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