Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
A desembargadora Maria Helena Ferreira repetiu diante dos seus pares do Tribunal de Justiça do Estado, no dia 19 do mês passado, um boato que circulava pelos bastidores forenses: de que há fraude na distribuição de processos para beneficiar alguns escritórios de advocacia de Belém. Disse que a prática não é nova, mas atingiu níveis que considerou insuportáveis. Magistrados se desinteressam pelas causas por já saberem, antecipadamente, a sentença a ser dada em favor de determinados escritórios.
Como os boateiros, porém, a magistrada, não forneceu provas ou indícios suficientes para permitir uma conclusão sobre suas denúncias. Mesmo apresentada agora por uma fonte credenciada, que em algumas ocasiões assumiu a vice-presidência do tribunal, justamente a autoridade responsável pela distribuição dos processos, deixando, por isso, o anonimato inconfiável, a mais recente acusação ainda não é conclusiva. Independentemente de seu desfecho, porém, é de causar preocupação e inquietação.
O estrondo da revelação levou a presidente do tribunal, Albanira Lobato Bemerguy, a criar de imediato uma comissão para apurar os fatos, com prazo de 30 dias para a conclusão. A comissão é integrada pelos desembargadores Constantino Guerreiro, corregedor das comarcas do interior, que a presidirá; Luzia Nadja Nascimento, corregedora da região metropolitana de Belém; e Célia Regina Pinheiro, coordenadora dos juizados especiais.
A respeitabilidade dos três magistrados à parte, sua indicação representa a superposição de suas funções: em caráter excepcional, eles foram designados para uma tarefa que ordinariamente já lhes cabe no desempenho de suas rotinas, incluindo verificar ou impedir a fraude apontada pela desembargadora Maria Helena Ferreira. Se constatarem a denúncia, estarão reconhecendo suas falhas. Talvez o mais recomendável fosse designar outros desembargadores e solicitar o acompanhamento tanto do Ministério Público quanto da Ordem dos Advogados, que também têm direito ao preenchimento de cargos no tribunal, pelo critério do quinto constitucional. A cautela preveniria questionamentos posteriores quanto à independência ou autonomia da comissão.
Os dirigentes do tribunal não pareciam tão preocupados com o risco de que a acusação da desembargadora pudesse ser comprovada quanto irritados com a atitude dela. Maria Helena Ferreira teria decidido fazer as declarações como represália pelo insucesso da sua tentativa de tornar-se presidente do TJE. Foi a última oportunidade para chegar ao posto mais alto da carreira: em 2011 ela terá que se aposentar pela compulsória, por atingir 70 anos de idade. Seu trunfo era a recomendação do Conselho Nacional de Justiça, do preenchimento do cargo segundo o critério da antiguidade.
Maria Helena é a mais antiga dos desembargadores, atrás apenas da presidente da corte. Ela tem 43 anos como juíza, enquanto o presidente eleito (e atual vice-presidente), Romulo Nunes, soma 30 anos de carreira. Mas enquanto Maria Helena, com 68 anos de idade, ingressou na magistratura como pretora, sem se submeter a concurso, e ascendeu ao desembargo em 1997, por antiguidade, Romulo, 10 anos mais novo, sempre foi promovido por merecimento. Sua ascensão foi meteórica: ele se tornou desembargador em 2000. É mais novo como magistrado do que Carmencin Cavalcante, Sônia Parente, Rosa Portugal Gueiros e Terezinha Fonseca, que nunca ocuparam a presidência do TJE.
Alguma delas provavelmente nem pretende ocupar o posto, mas todas têm motivos para não aceitar a “carona” do desembargador muito mais novo, que conquista a posição tão rapidamente, prenunciando outras ascensões fulminantes. Estariam elas entre os seis votos que Maria Helena obteve na disputa, contra os 23 de Rômulo Nunes. A derrota – e por tão larga margem – pode ter sido a última gota que fez a desembargadora decidir abrir as comportas e dar vazão às acusações de bastidores, que atingem em cheio o seu oponente vitorioso. Oportunidades ela teve para apresentá-las antes, como autoridade administrativa, e de forma ordenada, através de um documento, com a juntada de provas. Mas parecia faltar-lhe a motivação, que a derrota deflagrou.
Apesar dessa origem, entretanto, o fato foi gerado e se tornou irreversível, inclusive por sua circunstância. O pronunciamento da desembargadora Maria Helena coincidiu com a presença em Belém de uma comissão de fiscalização do Conselho Nacional da Justiça, impressionado com a morosidade do judiciário paraense. Mais de três mil processos estão prontos para serem sentenciados nos fóruns – cível e criminal – da capital há mais de 100 dias sem uma decisão por parte dos juízes.
Uma audiência pública foi considerada necessária pelo CNJ para coletar depoimentos e documentos que fundamentem uma decisão a respeito. A fiscalização é nacional, mas a prioridade foi dada aos Estados mais problemáticos. Antes do Pará, foram visitados apenas a Bahia e o Maranhão. O pronunciamento sobre a fraude na distribuição não podia ter sido feito em ocasião mais oportuna, para um auditório tão qualificado.
Tanto a presidente que encerra o seu mandato quanto seu substituto se anteciparam à apuração exibindo documentos sobre a lisura do processo de distribuição, incluindo uma perícia feita pela Polícia Federal em setembro, a pedido de Rômulo Nunes. É pouco provável que haja uma fraude tão aberta quanto a que a desembargadora derrotada sugeriu, mas a mesma tranqüilidade não é possível quanto à distribuição dos processos por dependência.
Vários incidentes já ocorreram, nos quais determinados processos eram remetidos diretamente para certos juízes, na presunção de que eles estavam preventos para essas ações (por já terem atuado em casos correlatos ou afins), mas essa presunção foi questionada. O último incidente envolveu a desembargadora Sônia Parente, que protestou, alegando ter sido discriminada na destinação de processo que lhe cabia e foi parar nas mãos de outro julgador. Não foi o primeiro caso em que ela tomou a mesma atitude.
Como o CNJ já havia decidido dar uma atenção especial à justiça do Pará, em função da sua morosidade, o incidente na eleição do novo presidente pode ter sido a coincidência feliz para trazer os fatos dos corredores forenses para a prova pública da verdade, seja lá qual for a motivação dos que deram início a esse confronto.
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