O serviço público e a democracia
Uma das grandes conquistas do regime democrático é a profissionalização da burocracia pública. Países como a Inglaterra e os Estados Unidos realizaram essa façanha: as mudanças políticas pouco afetam a carreira no serviço público. A mais antiga democracia ativa, a democracia inglesa consegue até conviver com o sistema monárquico de governo, combinando a formalidade aristocrática com a mecânica popular da sua política. Os detentores dos cargos políticos mudam, mas têm que se servir dos técnicos e burocratas admitidos por concurso público.
O exemplo mais notável dessa realidade é o parlamento. Os parlamentares saem como entraram, sem introduzir pessoal próprio nem levar consigo mais do que a remuneração da função. Corrupção sempre há e manipulação, também. Mas a espinha dorsal do serviço público é profissional.
De quanto tempo ainda precisaremos para consolidar essa estrutura, sempre precária e sujeita a chuvas e trovoadas entre nós? É ela que mantém a substância da relação entre o cidadão e o poder, servindo de canal de irrigação de informações, compromissos e serviços. O servidor de carreira representa os olhos e os ouvidos da sociedade por dentro das engrenagens do mando, da vontade dos poderosos, que precisa sempre ser limitada.
A cultura brasileira é desenvolvida em sentido contrário: o dono do cargo político engendra seus satélites de patrimonialismo, fisiologismo e compadrio, achando que o governo (em todas as suas formas) é uma extensão da sua casa (que se torna a casa da mãe Joana, na linguagem do povo). Essa promiscuidade vai de alto a baixo, do Sul ao Norte do país, em suas manifestações mais explícitas ou nas mais sutis. Deste último caso é um exemplo entre nós o da prefeitura de Santarém, Maria do Carmo Martins Lima, que precisa ser examinado sem paixão política para servir de lição para o amadurecimento da democracia no Brasil.
Maria do Carmo ingressou no Ministério Público do Estado sob a vigência de um dispositivo da Constituição de 1988, segundo o qual um integrante do MP não mais podia exercer atividade política, filiando-se a partido e disputando eleição. Mesmo assim, sua carreira de promotora foi deixada de lado e ela seguiu uma trajetória eminentemente política, filiando-se ao PT, disputando eleições e exercendo cargos de confiança no poder executivo. Em 2004 ela disputou a prefeitura de Santarém, foi eleita, assumiu o lugar e cumpriu todo mandato. No ano passado se apresentou de novo à disputa e foi reeleita. Só então a impossibilidade de conciliação das duas condições – a de política e a de membro do MP – foi contestada e a justiça cassou o seu novo mandato.
A questão ainda está pendente da decisão final da justiça. A tendência dominante é a confirmação da cassação. O texto constitucional é claro. O direito adquirido, argüido pela defesa da prefeita cassada, só beneficia a quem ingressou no Ministério Público antes de 1988. Não é o caso de Maria do Carmo, admitida em 1992. Mas como então ela conseguiu manter a ubiqüidade ilegal durante uma década e meia? A culpa não é da lei maior, clara como a água da fonte nesse comando, mas de nós todos, cidadãos, que não a conhecemos ou não exigimos seu cumprimento.
Se o desconhecimento ou a desatenção respondem por esse silêncio no primeiro momento, a impugnação, no segundo, teve motivação meramente eleitoral, interesseira (por isso mesmo, quem a motivou, o ex-prefeito Lira Maia, ficou fora de uma nova eleição, pela manifesta impopularidade da sua iniciativa, a par das suas próprias complicações com a lei).
Se o STF restituir o mandato à prefeita, a decisão colidirá com o dispositivo legal, talvez por alguma inspiração ou conveniência política. Será mais um desserviço à causa democrática, a tenra planta sempre sujeita aos golpismos, na visão de João Mangabeira. A confirmação da cassação servirá de exemplo para quem ainda confia no danoso “jeitinho” brasileiro como desvio das práticas retas. E poderá trazer um novo problema à promotora: a licença que seu chefe no Ministério Público do Estado lhe concedeu, para continuar na prática político-partidária, não se caracterizará então como ilegal? Não poderá ser solicitada a demissão da beneficiada, a bem do serviço público, e responsabilizado aquele que concedeu a licença, acobertando a ilegalidade? Ela podia ser concedida administrativamente ou só em processo judicial, a fim de garantir direitos e prevenir prejuízos?
Estas perguntas são feitas no exato momento em que outra instância do serviço público estadual, a Procuradoria Geral, consegue elevar o salário inicial dos seus integrantes. Já aqui foi comentado o privilégio reservado à carreira jurídica no Pará, enquanto outras funções técnicas não têm o mesmo tratamento ou são discriminadas, como é o caso dos delegados de polícia, cargo privativo de bacharéis em direito. O detalhe da nova lei da PGE é que o acréscimo de 100% por dedicação exclusiva que antes havia foi substituído por um quarto desse antigo percentual, ou 25%.
É evidente que a alteração irá desestimular a dedicação exclusiva. Procuradores e promotores poderão voltar a advogar particularmente. Abre-se para os membros da PGE a possibilidade de ganhar mais sem optar pela dedicação exclusiva. A mudança representa um prejuízo para a função pública. A prática que havia antes, do prêmio a quem se dedicava apenas à procuradoria, pôs fim a hábitos negativos para o interesse público, que foram restabelecidos agora. Por quê?
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