Freqüentei intensamente o imponente palácio Lauro Sodré durante o segundo mandato do coronel Alacid Nunes (de
Quando a questão era de finanças, o general Rubens Vaz sempre estava disposto a dividir a morigerada pitada no seu interminável cigarro com preleções didáticas e alguns números. Mas se a conversa era para abranger tudo que fosse humano, tinha que arrastar o professor Machado Coelho para a janela mais próxima. Era para dispersar as gargalhadas mútuas na dialética da prosódia – a dele, erudita, sem perder a jovialidade e a picardia.
Inocêncio Machado Coelho teria completado um século, no mês passado, se não tivesse mudado de estrela em 2001, quando seguiu no rumo de Celina, a sua musa, perda que o consumiu até o derradeiro dos seus dias. Houve um convescote intelectual para celebrar a data na Unama e um artigo de jornal de um dos seus ilustres filhos, o historiador Geraldo Coelho. E nada mais. Não é de surpreender. As novas gerações perderam o contato com o mestre. Um livro até foi editado com saborosos artigos que ele escreveu para a imprensa. Mas a distribuição falhou e os volumes devem ter estacionado em algum depósito. A divulgação foi quase nula. Mandei exemplares para dois amigos, apreciadores da fina escrita, e eles adoraram. É efeito inevitável: Machado Coelho escrevia como um clássico, mas sem pose. Com brilho, vivacidade e irreverência. E o que é mais raro: também com profundidade.
Mas escreveu pouco e publicou quase nada em vida na forma mais perene (ainda), a do livro. O que ele queria era ler, conversar com os amigos e circular pela cidade, de “flosô”, como se dizia. Foi fundamental para os que tiveram o privilégio de estar no seu pequeno e seletivo auditório, durante os longos serões na sua imensa e acolhedora casa, primeiro na Assis de Vasconcelos e, depois, na avenida São Jerônimo (rebatizada para governador José Malcher pela mania de nominar o que devia ser eterno).
Como Virgílio na Divina Comédia de Dante, Machado Coelho era o melhor dos guias sobre o que ler e como ler, do inferno ao paraíso, em português e em francês, sua língua afetiva, que dominava o bastante para poder bem traduzir poetas, como os simbolistas. Não só indicava e comentava: ia também buscar o volume referido, singrando pelas passagens necessárias. E o que não faltava na sua retaguarda eram volumes, aos milhares.
Se faltasse, ele atravessava a parede e ia para o outro lado, à biblioteca do seu par cultural, o outro mestre, Francisco Paulo do Nascimento Mendes, que também atendia por Chiquinho e Ratinho, se a voz era conhecida. Era ele que mais ia ao outro lado, regressando, às vezes, com ataques de fúria, inevitáveis nas discussões apaixonadas que se seguiam. O mundo acadêmico congelou a paixão. O intelectual virou numismata, colecionador de conceitos, estripador de entranhas.
Hoje as duas bibliotecas estão reunidas na mansarda, transmitida à família. O centenário do pequeno grande Machado podia ter sido a hora certa para abri-las à visitação pública, prolongando aqueles saraus, que, se não voltam mais, podem ser reinventados através da consulta aos preciosos volumes, a impressão definitiva dos seus donos e leitores, seu renascimento em terceiros que lhes seguirem na paixão que os moveu. Talvez, à margem dos papéis, a memória anotasse a época que passou, quando um governo se fazia com meia dúzia de assessores (e não por centenas deles) e sabíamos o que eram ou faziam pela simples enunciação dos seus nomes. O de Inocêncio Machado Coelho pode ser imediatamente associado à mais elevada das culturas humanas, em Belém ou em qualquer outro lugar.
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