Já estava saindo para a jornada matutina quando apareceram na tela as imagens do assassinato de um cobrador de ônibus no Rio de Janeiro. Vários assaltantes entraram no veículo, limparam os passageiros e já saíam quando um deles se virou e sem qualquer alteração na fisionomia ou nos movimentos atirou no peito do cobrador, que mexia descontraidamente em alguma coisa na mesinha atrás da qual estava sentado, sem qualquer sinal de agressividade ou nervosismo. A bala penetrou perto do seu coração e de imediato sua cabeça tombou. Ele morreu na hora.
Voltei, sentei e fiquei olhando para a tela em estado de choque. Veio outra imagem de assalto, agora
Não sei de quantos minutos precisei para retomar a minha rotina. Encostei-me ao sofá e fiquei olhando para o aparelho de televisão enquanto tentava respirar fundo e sair da catatonia. Na verdade, eu estava revoltado, indignado, horrorizado. Minha vontade era gritar para o governo pegar bandidos com esse grau de selvageria, trancafiá-los num cubículo de concreto, jogar as chaves fora e deixá-los à míngua para o resto das suas vidas. Sim, porque eles não têm o menor respeito pela vida, deles ou dos outros. Nem seria o caso de respeito: de consideração por esse patrimônio único e insubstituível, o mais valioso que temos.
São animais desprovidos da distinção humana. Com o agravante de que não se guiam pelos instintos, como os não humanos. Se agissem assim, não matariam. Qual a ameaça que o cobrador, na primeira situação, e a caixa, na segunda, representavam para os bandidos? Instruídos a não reagir de maneira alguma, deixando os agressores em total liberdade, eles permaneceram inertes diante dos assaltos, integrados ao enredo determinado pelos criminosos. Nem assim conseguiram salvar suas vidas. Mais do que mortos, foram abatidos – sem culpa, sem dó, sem piedade. Alguém que ainda preserva dentro de si o senso da dignidade reage querendo fazer a justiça de Talião, ou, no mínimo, tentar a mais severa e implacável das punições dentro da ordem legal brasileira, que exclui a pena de morte.
Como a sociedade pode e deve agir diante de agressores que nada temem, nem a própria morte, e que superaram até a lógica da delinqüência porque agem por impulsos já dissociados dos instintos de preservação, por brutalidade ou suscetibilidade patológica? Já não se pode nem prever situações-limite, a partir das quais eles se comportarão fora dos padrões e das expectativas. É o irracionalismo absoluto, o horror em grau máximo.
Há anos venho pensando a respeito. Em parte, por motivação pessoal. Tenho um sonho recorrente (e, felizmente, espaçado), no qual sou morto por um guri de rua drogado, que atira quando tento convencê-lo de que nada ganhará com isso. Mas, sobretudo, por exercício de cidadania. Acho que a única solução (fora do “salve-se quem puder e o Estado é meu e me defendo com esse poder”) terá alguma coisa a ver com a idéia de começar a acompanhar o eventual futuro criminoso desde a infância, através de um assentamento ou ficha do seu comportamento na escola.
Pode parecer que essa vigilância é um passo para o Grande Irmão de George Orwell, ou já sua personificação desde a origem. Há uma forma de evitar esse mal. Até o primeiro crime, o objetivo desse acompanhamento é ajudar a criança (depois, o adolescente até a maioridade civil) e sua família a enfrentar suas próprias crises. Todas as anotações e as atitudes da autoridade (pública ou particular, conforme a escola) seriam feitas exclusivamente por psicólogos e pedagogos. Por ninguém mais.
As escolas seriam obrigadas a manter equipes capacitadas a fazer esse acompanhamento e elas, por sua vez, receberiam supervisão constante, através de circuitos de crítica e consistência entrecruzados, de tal forma a manter sempre a diretriz desse projeto: evitar que a sucessão de impactos na formação do ser humano o despeje da vida saudável para um círculo de criminalidade.
O que entender por “saudável” nesse contexto? A preservação da capacidade de decisão da pessoa, de autodeterminação, referenciada por critérios éticos e morais coletivos e por uma integridade individual. Por isso é que a ficha ou assentamento seria ferramenta o trabalho de aconselhamento e intervenção em família, fazendo seus membros dialogarem e se visualizarem diante das questões, das quais muitas vezes fogem.
O Estado, não como uma engrenagem monolítica ou centralizada, mas como um organismo múltiplo, arejado pela crítica interna e os vários níveis de controle, empregaria todos os recursos da ciência da personalidade e da formação social para ajudar as crianças e os adolescentes, como seres isolados e enquanto estrutura familiar, a pelo menos ter a condição de identificar as situações, diagnosticar as ameaças e poder encontrar um caminho próprio, no rumo da autonomia.
No curso da realização desse acompanhamento seria fortalecido tanto o conhecimento das pessoas quanto do poder público. Se, apesar de todos os esforços feitos para preservar a sanidade do cidadão, ele se desviar para o crime, a ficha de informações sobre a sua vida servirá de referencial para a análise da sua posição numa outra circunstância, a do crime. Já então o policial terá uma retaguarda para avaliar, quando possível, o grau de imponderabilidade de uma ação preventiva ou repressiva, sem que se instaure o estado de completa selvageria. É para evitar que o darwinismo social que se estabelece diante dos nossos olhos chocados, mas impotentes, se torne irremediável, dando outra cercadura à famosa frase de Luís XIV: depois de mim, o dilúvio.
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