Era com certo orgulho que os paraenses se referiam à sua pobreza antes de o Estado (como toda Amazônia) ser sangrado nas suas artérias vegetais pelas estradas de penetração: aqui havia pobreza, sim, mas não miséria. Os resultados do IDF (Índice de Desenvolvimento Familiar), publicados na edição passada deste jornal, mostram que esta situação chegou ao fim: o Pará tem agora a segunda pior pobreza do Brasil, que só é melhor que a pobreza do Amazonas. Significa dizer que nossos pobres são mais pobres até do que os do Nordeste, arquétipo da miséria antes do Bolsa Família, de cujo cadastro o índice foi extraído.
É uma constatação chocante, mas quem se importa com ela? Ao que parece, ninguém. Ou só o Dieese, a fonte de estatísticas sindicais, que repercutiu a matéria, repassando os dados. Eles são um atestado da vilania nacional em relação à última grande fronteira de natureza do país (e do mundo) – e da falência das elites locais. O Bolsa Família, uma política compensatória (mas que não promove desenvolvimento), foi mais eficiente no Nordeste do que na Amazônia, as regiões situadas no rabo da fila da economia brasileira, por algum fator que ainda não foi bem analisado, mas que pode ser político, em função da grandeza demográfica (e eleitoral) da região nordestina.
Na Amazônia parece mais consolidado o distanciamento entre a curva da riqueza e a da pobreza. As duas evoluem para cima, mas a da apropriação das fontes de riqueza em velocidade maior, criando a sensação, a impressão e a expectativa de que são dois mundos condenados a não se tocarem, exceto através da violência. Esta é a matriz dos assustadores registros de criminalidade na região amazônica e, em particular, em Belém, a capital de maior economia informal e de desemprego do Brasil, dentre vários outros registros negativos.
Não há nenhum sinal de que essa perspectiva mude. Pode-se perceber isso analisando as hipóteses de liderança política no horizonte visualizável a partir da capital. Ou estamos condenados a repetir os líderes já estabelecidos ou a optar por equivalentes a eles que se ensaiam nos umbrais do poder. Por mais que alguns segmentos da administração pública estadual tentem dar melhor expressão territorial à centralização estabelecida no controle político, esses esforços, por serem tímidos e inconsistentes, sequer tocam na engrenagem em funcionamento.
A única hipótese significativa que consta da agenda paraense é a da redivisão territorial do Estado. A viabilidade da criação dos dois novos Estados em projeto é, hoje, mais uma questão política do que técnica. As variáveis em questão mostram que é menos relevante tratar da implementação da idéia, porque ela tem pleno potencial de execução, dependendo apenas de escolhas técnicas (que serão presumidas, à falta de vontade para tratá-las no plano racional, sem os partidarismos e as paixões, ainda predominantes). O problema é o de pagar o preço requerido pela decisão.
Há um preço material, de tradução monetária. Decidir sobre ele é uma prerrogativa do Congresso Nacional, que avalizará a conta em nome do contribuinte brasileiro. Em tese, a fatura é alta demais para ser bancada. O momento não recomenda onerar o orçamento federal e interferir na distribuição de recursos pelos Estados da federação, que está bastante tumultuada. Mas o parlamento nacional se tornou uma caixa de pandora, nos intervalos em que é, acima de tudo, a casa da mãe Joana. Dele, tudo se pode esperar, sobretudo o imprevisível ou inimaginável. Pela lógica, porém, os projetos de criação dos Estados de Carajás e do Tapajós deverão esbarrar no receio de que seu custo seja desaconselhável na atual conjuntura.
Pode, entretanto, acontecer a surpresa e a tramitação chegar a seu termo, com a autorização do plebiscito para decidir sobre a redivisão do Pará. Analisando-se a foto da caravana de políticos de Carajás que foi ao Congresso, em Brasília, pressionar pela tramitação do projeto do novo Estado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, a pergunta imediata que vem é: mas qual a diferença entre eles e as lideranças falidas que dominam o Pará de hoje? De verdade, nenhuma. A avidez nas expressões dos políticos que posaram para as fotos recomenda cautela em relação aos seus propósitos. Mas também é automático outro questionamento: e pode-se obter foto de qualidade diversa de qualquer grupamento político no Brasil?
Se a causa tem consistência e nela estão contidas sementes de boa germinação, esse instantâneo ruim do momento de transição será superado, como já aconteceu em outras ocasiões de relevância na história do Brasil e de outros países. Mais importante é revolver as estruturas viciadas, enrijecidas ou corrosivas, como a que sustenta a cadeia de decisões no Pará dos nossos dias.
Não importa quem esteve na cadeira de governador nas últimas décadas, nas quais o alto do poder decisório esteve em Brasília ou mais além: permaneceu sempre em vigor a regra da dilapidação das riquezas estaduais, da apropriação dos seus resultados e da consolidação do desnível entre riqueza e pobreza. Os líderes do lado de lá, o povo do lado de cá. E assim permanecerá se algo de mais profundo não acontecer.
Pois, então, que seja o abalo dessa estrutura de poder pela redefinição do espaço territorial do segundo maior Estado da federação. Se Belém não se apresenta como reformadora conseqüente, em condições de eliminar o fosso que separa as extremidades físicas do Estado do seu centro administrativo, que Belém perca de vez a condição de nau capitania e trate de navegar em outro espaço.
Por isso, dou meu apoio aos plebiscitos. Que venha a esfinge para a arena. Para ser decifrada ou nos engolir. É melhor sucumbir com honra, no ardor do combate pela história, do que permanecer sob uma pasmaceira que apenas encobre a pilhagem do Pará. Não importando os seus agentes, se tucanos ou ratos.
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