Ele me sucedeu como correspondente de O Estado de S. Paulo quando fui para a sede, um ano e meio depois. Voltei a Belém para criar a primeira sucursal regional da empresa e ele se manteve no lugar. Permaneceu quando o projeto fez água e a brilhante equipe formada foi se desfazendo. Ninguém jamais questionou a relação de parentesco: Zé se firmara por seu valor. O mesmo valor que o credenciou a ser presidente do sindicato dos jornalistas, em 1982. Quando deixei o cargo, ele foi vice-presidente de Emanoel Ó de Almeida, mas podia ter sido o meu candidato sem o risco de nepotismo. O intervalo, porém, foi importante. Nunca mais ocupei qualquer posição na diretoria, cargo de sacrifício, que só os mal intencionados (ou masoquistas) querem bisar na íntegra. Raimundo ganhou a eleição sem precisar da minha participação.
Durante 15 anos dividimos o escritório do Estadão em Belém, cobrindo o Pará e, às vezes, a Amazônia toda, para aquele que era o mais influente jornal do país (posição que perdeu, não por acaso, quando a família Mesquita, fragmentada, deixou o topo da empresa e permitiu que sua mística virasse pó). Saí em 1989, mas ele ainda ficou por dois anos, até que a base física fosse desfeita e o serviço voltasse a ser como era antes: um único correspondente, acionado pela pauta paulistana. A transformação que operamos na cobertura jornalística da Amazônia, buscando dar-lhe autonomia e paridade, virou miragem. O exotismo amazônico voltou a ser a marca da linha editorial imposta de cima para baixo.
Quando desisti de assumir a sucursal da Gazeta Mercantil em Belém, repassei-lhe o lugar, que ele ocupou com a naturalidade das outras vezes, impondo-se na função por seu desempenho, sem abandonar o seu modo discreto e afável de exercer a chefia, como um colega e igual. E sem deixar de acompanhar os fatos, como repórter, que sempre foi, nas ruas e nos gabinetes. Dedicando mais tempo ao jornalismo científico.
Em tantos anos de parceria profissional, a relação fraterna sempre foi um detalhe. Tratávamo-nos como dois repórteres, sem diferença hierárquica, sem favorecimentos. Havia respeito entre nós, admiração recíproca. Como pessoas, éramos bastante diferentes, mas uma coisa nos unia: o humor. Quando as rodas se formavam, com outros irmãos e amigos, ou mesmo estranhos, a ironia ficava solta. Ninguém estava protegido da gozação, do chiste, da maledicência inofensiva.
Posso dizer que a maior característica de estarmos juntos na mesma profissão e na mesma empresa por tanto tempo foi a de jamais imaginarmos e arquitetarmos o mal a qualquer personagem, mesmo o mais ignóbil da cena pública. Os gostos (e desgostos) pessoais nunca contaminaram nossa pauta nem se infiltraram em nossos textos. Raimundo fez o melhor dos jornalismos de 1971 até uma semana atrás, quando o câncer, que combateu durante longos e sofridos quatro anos, o derrubou numa cama de hospital, colocando-o à mercê de sua crueldade e fatalidade.
Abracei e beijei meu irmão, dividi com ele nossas lágrimas, numa intimidade rara no nosso cotidiano de trabalho pesado. Ele sempre encarou a doença com a indestrutível vontade de viver, o sempiterno amor pela vida, pela fruição da existência, a boa conversa, a mesa apetitosa, os amigos, as pessoas queridas e o jornalismo, que foi a sua paixão. Ele superou todas as expectativas, mesmo as mais otimistas, quando da sua internação, para travar o maior combate da sua vida com altivez, com muita seriedade e, ao mesmo tempo, como se estivesse dançando o carnaval pelas ruas de Belém, num bloco, com seu pareô, seu colar de flores, seu boné, sua barba e aquele jeito característico de ser Raimundo José de Faria Pinto, marca pessoal, intransferível e que vencerá todas as formas de morte. O Pintão de todos os seus muitos amigos e admiradores, como eu. Nosso patrimônio comum.
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