As audiências públicas realizadas no mês passado no Pará para a avaliação do impacto ambiental da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, revelaram a completa falência desse esquema de consulta exigido pela legislação ambiental brasileira. Não só – nem principalmente – pelas razões apresentadas pelos críticos do projeto. Mesmo que o tempo reservado à consulta popular fosse muito maior, em ambientes mais amplos, com maior possibilidade de crítica, sem medidas inibidoras e com a disposição dos empreendedores de acatar as restrições e modificar (ou mesmo cancelar) o projeto, caso necessário, não estaria garantida a plenitude do direito dos opositores da usina ao contraditório. Muito menos a possibilidade de eles fazerem valer sua vontade.
Em sentido inverso, com todas as falhas e vícios constatados nas quatro audiências, pode ter-lhes faltado legitimidade, mas elas cumpriram as exigências legais, ao menos formalmente. Por isso, é improvável que venham a ser canceladas, inviabilizando o cronograma estabelecido para as obras daquela que poderia vir a ser a terceira maior hidrelétrica do mundo. Ou impondo um derradeiro ponto final nessa já longa história de tentativas do governo e de empreiteiros de fazer a usina descer goela abaixo de uma opinião pública que não se convenceu ainda sobre a sua necessidade, ou mesmo conveniência.
Na trajetória do licenciamento ambiental, a audiência pública tem caráter informativo e consultivo, mas não deliberativo. A decisão cabe ao Conselho Nacional do Meio Ambiente, no qual o peso do governo predomina sobre a participação da sociedade. O documento em torno do qual se baseia o debate, o estudo e o relatório de impacto ambiental, no caso de Belo Monte foi produzido pelas empresas interessadas na obra, mas que com ela ainda não têm qualquer vínculo legal. Se as empresas responsáveis pelo EIA-Rima não ganharem a licitação para a construção ou a operação da usina, serão ressarcidas pelas despesas efetuadas. Mas é claro que tendem a conduzir a questão para o âmbito dos seus interesses comerciais.
Não surpreende que o debate não seja aberto e sincero, numa dialética voltada para atender os interesses coletivos. As partes em litígio procuram impor seu ponto de vista porque a fase da formação de juízo já passou, embora – e aí está a maior falha do esquema atual – não haja confiança na qualidade das informações apuradas, menos ainda na honestidade de propósitos dos promotores dos estudos. A desconfiança tem seus fundamentos nessa contradição insanável: a falta de isenção dos empreiteiros para assumir a condição de autores da avaliação do impacto ambiental da obra que querem executar.
É óbvio que eles não iriam renunciar ao poder de conduzir as audiências para o desfecho desejado, que coincide com o desejo do governo. Mas também tinham motivos para se prevenir para o desenlace inesperado e indesejado nos dois capítulos anteriores da história de Belo Monte. O primeiro, 20 anos atrás, quando a índia Tuíra esfregou um facão no rosto do representante da Eletronorte, criando uma cena que chocou o mundo. O segundo, no ano passado, com o ataque dos kayapó a um engenheiro da Eletrobrás, também em Altamira. O esquema de segurança foi reforçado para prevenir a repetição desse tipo de manifestação, já agora esvaziada da sua carga simbólica anterior. O estágio histórico do projeto já é outro. Os índios deixaram de ser os personagens principais. Os contextos são agora mais amplos.
Quem acompanhou a trajetória de Belo Monte, lendo os estudos produzidos ao longo do tempo, tem argumentos fortes para contestar a validade do empreendimento por seus aspectos técnicos. A fragilidade está na essência do projeto, da sua viabilidade econômica. Embora, no pique do período chuvoso na bacia do Xingu a usina possa atingir a plenitude da sua capacidade de geração de energia, de mais de 11 mil megawatts, a energia firme, disponível o ano inteiro, está bem abaixo do nível de viabilidade econômica.
Durante quatro meses do ano a hidrelétrica ficará parada por falta de água e durante outros quatro meses operará com produção muito baixa. Para retirar-lhe uma deficiência fatal do projeto original, a de inundar área enorme para acumular água suficiente em seu reservatório, assim possibilitando uma geração contínua maior, Belo Monte funcionará com uma reserva pequena, quase a fio d’água. Dessa forma estará sujeita à enorme diferença de vazão que o Xingu apresenta entre o verão e o inverno.
Com a integração ao sistema nacional de energia, ela pode combinar o regime de águas do Xingu com as bacias de outras hidrelétricas espalhadas pelo país. Ainda assim, não é aceitável fazer um investimento que deverá passar de 30 bilhões de reais para introduzir obra de tal repercussão sobre uma região tão delicada, com o agravante de consolidar o Pará como exportador de energia bruta para desenvolver outros Estados (e países). Sem falar na longa e caríssima linha de transmissão para fazer a energia chegar aos locais de maior consumo, que, evidentemente, não estão no Pará.
A confusão, os impasses e os conflitos que acompanharam as audiências públicas de Belo Monte não deixam mais dúvida: é preciso modificar a sua regulamentação. A tarefa de avaliar previamente os impactos socioambientais de uma hidrelétrica compete ao poder público, num esquema capaz de estimular um debate franco e leal, à base de conhecimento técnico e científico, até que o tema esteja suficientemente consolidado e amadurecido para ser levado à sociedade, em bases racionais, para a audiência dos cidadãos. Não num cenário circense ou futebolístico, mas num ambiente propício ao esclarecimento e ao bem coletivo, metas que até agora se revelaram inatingíveis.
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