Lúcio Flávio Pinto
Quantas questões tramitam pela justiça brasileira com valor de sete bilhões de reais? Pois há uma desse porte que circula pelos fóruns há 15 anos. É uma ação de indenização por “custos financeiros” proposta contra a Eletronorte pela Cnec (Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores), empresa de consultoria do grupo Camargo Corrêa, uma das maiores empreiteiras do país.
O processo teve início em dezembro de 1994. A Cnec alegou que a Eletronorte atrasou o pagamento de contratos firmados com a consultora, obrigando-a a recorrer a financiamento bancário para manter o serviço, numa época de inflação alta, e não foi devidamente ressarcida desses custos. A decisão de primeiro grau foi categórica, nada indicando que a causa prosperaria. O juiz da 5ª vara cível federal de Brasília fundamentou sua decisão em favor da estatal de energia da Amazônia numa cláusula do acerto de contas entre as partes, em 1993, quando os contratos foram rescindidos, dois anos depois de findos os serviços. O juiz considerou essa cláusula “de "clareza ímpar” para a elucidação do contencioso, por estabelecer o seguinte: “A credora reconhece, em caráter irrevogável e irretratável, para não mais reclamar, preservada a relação contratual, que seus créditos até 30 de abril de 1990, aceitos pela Eletronorte, são os referentes às faturas relacionadas no anexo 3”, no qual estava a lista dos serviços prestados pela consultora privada.
A Cenc não se conformou com a decisão de 1º grau e recorreu à instância seguinte, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que reformou o julgamento anterior e deu ganho de causa à Cnec. Para conseguir essa mudança, o tribunal se baseou em argumentos no mínimo insólitos e surpreendentes. Ao invés de usar o Código Civil, que regula os contratos, recorreu ao Código de Defesa do Consumidor, sem justificar essa estranha migração, para enquadrar a consultora como hipossuficiente (sem suficiência econômica) e vulnerável, neste aspecto deixando de lado a definição dessa figura no Código de Processo Civil. Até o Código de Hamurábi, com seus quatro milênios de existência, serviu de inspiração para a proteção dada à Cnec. A decisão do tribunal se prendeu às preliminares, sem entrar no mérito da questão.
Como seus argumentos de mérito (e, portanto, as provas constantes dos autos) não foram apreciados, a Eletronorte recorreu ao Superior Tribunal de Justiça. A votação na 2ª turma do STJ estava surpreendentemente empatada (2 a 2), com o voto do relator favorável à empresa privada, quando, no dia 20 do mês passado, a questão foi desempatada pelo ministro Luiz Fux, convocado da 1ª turma para dirimir o impasse. Felizmente, em favor dos cofres públicos e da verdade.
Seus argumentos, que acompanharam os votos divergentes dos ministros Herman Benjamin e Eliana Calmon, mostraram que as cláusulas contratuais vedavam a cobrança de valores que não os listados no anexo 3, o que afastava a consideração sobre a alegada hipossuficiência da Cnec. Hipossuficiência estabelecida com base no histórico da empresa na internet, sem qualquer consideração por provas muito mais sólidas, que estavam nos autos.
Com a decisão do STJ, a questão voltará ao tribunal do Distrito Federal. Independentemente da decisão de mérito de segundo grau, o contencioso deveria servir de motivo para se dar atenção a esses vultosos contratos assinados por órgãos públicos com empresas privadas. Em particular, na Amazônia, a atuação de consultoras, como a Cnec, que atuam decisivamente na definição da viabilidade de grandes projetos, como o polêmico e atual da hidrelétrica de Belo Monte. E para a análise da atuação do poder judiciário quando essas batatas quentes chegam aos fóruns. O silêncio ou a cobertura burocrática da grande imprensa a esse caso não permitiu à opinião pública dar ao episódio a importância que ele tem.
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