Lúcio Flávio Pinto,
Editor do Jornal Pessoal
O ex-governador Almir Gabriel produziu mais um dos documentos falsos dos quais a história brasileira tem sido pródiga. Aparentando dizer adeus à política, tenta criar a imagem de santo guerreiro contra o dragão da maldade. Imagem forte, mas falsa. Não há santo na política do Pará.
O ex-governador Almir Gabriel decidiu renunciar à condição de presidente de honra do PSDB do Pará (sem, entretanto, se desfiliar do partido, conforme também anunciara, três semanas atrás). Tomou a decisão por causa dos “atuais desvios dos princípios políticos e éticos que o alicerçavam”. O principal desses motivos seria “a rendição ao atual representante exibicionista do Bradesco na Companhia do Rio Amargo, somada ao governo egocêntrico de São Paulo, ‘territorializando’ a recolonização da gestão pública do Pará, dividido e agachado, no momento especialmente favorável para derrotar o petismo obeso e obtuso que retensamente [pretensamente] governa o Estado, hoje”.
Essa frase de efeito e bombástica não saiu da cabeça de quem pensa em abandonar a disputa pela indicação como candidato ao governo do Pará, que seria o propósito da carta. Sintomaticamente, ela foi remetida ao Diário do Pará, mas não ao PSDB, que aguarda por sua postagem até hoje. O ex-governador tucano anunciou o que faria – e não fez. Trata-se de um documento utilitário, a versão ao tucupi de outros exemplos tristemente famosos na história brasileira por não serem autênticos. Ou, no caso, não ser sincero.
Na verdade, Almir Gabriel apenas esboçou a intenção de abandonar a guerra de guerrilhas que adotou junto ao grupo atualmente hegemônico no PSDB, para impor novamente (pela quarta vez) sua candidatura, contra a posição da maioria dos seus correligionários. Mas o que ele tentou foi criar para uso próprio uma bandeira de campanha, a partir da identificação de um inimigo, de um monstro com múltiplas cabeças: a antiga Companhia Vale do Rio Doce (“amargo”, na recriação nada original do ex-governador), seu principal executivo, Roger Agnelli (o “representante exibicionista do Bradesco”), e suas derivações, que tanto favorecem o PSDB do governador paulista José Serra quanto o PT do presidente Lula e da governadora Ana Júlia Carepa.
Na carta, Almir manifesta a crença no surgimento de “novos líderes”, que, junto com o povo paraense, “darão as respostas e lições adequadas pelo voto soberano livre altivo de sua maioria”. Como não há um novo líder enquadrável nesse perfil, que tal pensar na volta do “santo guerreiro” Almir Gabriel, o único que se apresenta com a disposição de enfrentar o dragão da maldade?
Só se o povo paraense abstrair duas coisas: a memória e a verdade. Se a Vale se tornou o principal personagem em terras paraenses, atuando com desenvoltura tanto na economia quanto na política, e se esse poder de mando assumiu nova forma colonial a partir de uma sede metropolitana real, que é São Paulo, o doutor Almir Gabriel não tem a menor autoridade moral, ética, política ou administrativa para se apresentar como o cavalheiro imaculado, capaz de reconquistar a autonomia e a dignidade do Pará. O capítulo mais recente dessa “territorialização da recolonização”, para empregar o patoá – repleto de neologismos – do tucanato dubidativo, começou durante o primeiro mandato do governador Almir Gabriel (1995-1999).
Primeiro foi quando a CVRD foi privatizada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, de uma forma não só lesiva aos interesses nacionais (e à própria lógica do mercado), como ilegal e imoral, já que nem as regras do edital de venda foram respeitadas pelos vendedores. Em seguida, foi quando o deputado federal do PSDB de São Paulo (e ex-ministro de Fernando Collor de Mello), Antônio Kandir, propôs uma lei isentando de ICMS as matérias primas e produtos semi-elaborados que fossem exportados. A medida sangrou em especial dois Estados: o Espírito Santo e o Pará. Os capixabas conseguiram criar sucedâneos e paliativos para a hemorragia. Os paraenses ficaram na “verbalização”, exercício característico dos tucanos. Vitória tem o melhor PIB per capita dentre as capitais do Brasil. Belém, o quarto pior. A diferença entre uma e outra é de seis vezes (600%).
O doutor Almir esbravejou a princípio, mas se enquadrou ao puxão de orelhas da direção nacional do seu partido e a iniciativas de prestidigitação da própria Vale, algumas feitas diante do público, outras em gabinetes fechados. O governador se deixou levar até por uma pantomima primária, cedendo sua presença solene para o lançamento da pedra fundamental da usina de cobre da Salobo Metais, em Marabá, que não passava de jogo de cena, para calar sua excelência. Como, de fato, calou.
Incoerente com o que só agora afirma, o governo do doutor Almir concebeu no ano 2000 a lei 6.307, que ampliou os benefícios para a Vale ao assegurar o diferimento do ICMS “aos contribuintes que realizem operações relativas à extração, circulação, comercialização, operações e prestações de serviço de transporte de bauxita, alumina, alumínio e seus derivados, manganês, minério de ferro, no território do Estado”. É quase a mesma lei (5.758) que favoreceu a Vale em agosto de 1993, da lavra de Jader Barbalho, do qual o doutor Almir diz-porque-diz ser diferente, o oposto, a alvura da pureza em contraste com o negror da indecência.
A medida abriu um enorme guarda-chuva para a companhia se proteger (e se desviar) da cobrança de imposto, inclusive a devida, desfavorecendo o erário. Mas já se enquadrava na perspectiva do governador, de que seria preciso ir além do limite da responsabilidade (outro jargão nacional tucano) para transformar um poste eleitoral em seu sucessor, na eleição de 2002. Daí o rancor e o ódio de Almir contra Simão Jatene, que lhe devia ser submisso porque sua eleição só se tornou possível pelo uso extremado da máquina oficial, azeitada por recursos legais e “não contabilizados” (para usar outro neologismo, este petista).
Nesse período, a Vale ou era fartamente elogiada ou favorecida por silêncio obsequioso. Ela foi responsável por quase dois terços dos recursos oficialmente utilizados pelo PSDB para eleger Jatene governador. Foi a campanha estadual que mais a empresa ajudou em todo país. Aí, sim, guardando alguma proporção com o tamanho dos recursos que a empresa explora no Pará.
Mesmo sendo incoerente, Almir Gabriel tem razão quando lança o véu do descrédito sobre todos os governadores que se relacionaram com a mais importante entidade em atuação no Estado, que é a antiga Companhia Vale do Rio Doce. Seu primeiro interlocutor no poder foi o senador e ministro Jarbas Passarinho, que pôde colocar seus protegidos em cargos de direção local da empresa e usar sua estrutura para ter mobilidade na extensa base territorial do Estado. Já Alacid Nunes usufruiu a posição de integrante do conselho de administração da companhia, além de outros mimos. Aloysio Chaves, fiel à sua postura hierática, andou trocando farpas com a empresa e obrigando-a a engolir algumas de suas posições, mas foi traído pelo episódio da venda das terras de Carajás, que lançou pingos de lama sobre o seu governo, a partir de dentro dele.
A Vale achou que ia começar a ter problemas quando assumiu o primeiro governador de oposição, o primeiro também eleito pelo povo desde 1966. Eu estava nos fundos do cinema de Carajás quando a cúpula da companhia teve o primeiro contato com Jader Barbalho. Seu pronunciamento – frontal e crítico – impressionou vários executivos, que foram lá atrás do salão pedir informação sobre o jovem político, para eles uma surpresa e um choque. Esse estado de espírito ainda persistia, embora já atenuado, quando Jader discursou na inauguração da Albrás, em outubro de 1985, e incorporou posições dos críticos do projeto. Mas logo se viu que tratava-se de figura de linguagem, para usar uma expressão polida.
A Vale tem sido alvo de muito tiroteio no Pará, mas, sem exceção, quando a carga parte das posições de poder, é fogo de artifício e bala de festim. Ou moeda de troca. O PT e a governadora Ana Júlia Carepa falam da companhia como de um belzebu, mas acabam de incorporar 180 milhões de reais aos cofres públicos, graças a um acordo, através do Programa de Regularização Fiscal das Empresas do Pará (o Regular), criado em 1º de agosto e já extinto. Do total dos valores acertados, 90% foram recolhidos pela Vale, que pagou quase R$ 180 milhões, à vista, e economizou outro tanto de débitos acumulados, já inscritos na dívida ativa ou sob execução.
Só não foi um negócio da China, ao qual a empresa está tão acostumada, porque foi ainda melhor: um negócio do Pará. A Vale fez o melhor dos acordos e o governo, à míngua, sem liquidez, recebeu uma injeção de fortalecimento para suas obras – e sua campanha eleitoral, naturalmente. A Vale também se acostumou a esse tipo de expediente na sua relação com os políticos e autoridades locais. Com a elite do Pará, em suma.
Se o diagnóstico do médico Almir Gabriel sobre a anomalia do exercício tanto da soberania quanto da territorialidade do poder no Pará é preciso, ele não é exceção no elenco de líderes omissos e coniventes com essa situação. Pelo contrário: é um dos que mais contribuiu para que essa situação se consolidasse. O Pará continua órfão de líder de verdade, dotado de autonomia e competência para lidar com os principais personagens da história do Estado. Como todos os demais que critica de forma hipócrita, o doutor Almir é passado, não presente. E muito menos futuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário