Lúco Flávio Pinto: O homem mudou o rio
Como sempre acontece quando as cheias dos rios na Amazônia são maiores, as autoridades se movimentaram para socorrer os “flagelados” e aparecer diante da opinião pública. Depois, tudo voltará ao que era antes. Este ciclo, porém, pode estar chegando ao fim.Tem sido sempre assim: o Brasil só descobre o movimento anual das águas na vasta bacia amazônica, a maior do mundo, quando ela alcança o nível da tragédia. Não foi diferente neste ano. As imagens transmitidas pela televisão mostravam casas submersas, gente abrigada em acampamentos, destruição e caos. No entanto, a subida das águas é fato natural e, com as tecnologias modernas, francamente previsível – além de ser uma dádiva da natureza. Deveria causar tanto estrago assim e seus efeitos se tornarem nocivos e irreparáveis?
Não há dúvida que a ação das águas deixou de ser apenas uma manifestação dos elementos da natureza. A Amazônia brasileira já tem 22 milhões de habitantes, um tamanho considerável em relação ao próprio país, mas que tem uma tradução mais exata quando referido ao conjunto da região. A parte amazônica da Bolívia, a segunda em população, tem um quinto da população brasileira no espaço amazônico do continente.
O significado dessa grandeza, entretanto, não se traduz com fidelidade em termos de habitante por quilômetro quadrado: a relação ainda é insatisfatória para aqueles que defendem a plena ocupação física da região, com muitos milhões a mais de pessoas. Mas quem pensa assim não tem uma idéia de Amazônia sequer próxima da realidade. Ainda mais porque há expressivas concentrações populacionais no meio urbano: mais de dois milhões na Grande Belém, 1,5 milhão em Manaus, 400 mil
Hoje, há agrupamentos urbanos de mais de 100 mil hectares espalhados pelo interior amazônico, com seus efeitos para fora e para dentro das cidades, que atraem ou espraiam conseqüências. Neste ano houve uma cheia que evidenciou essa nova realidade, ainda mal percebida pelos analistas e pelos gestores da coisa pública. Em Altamira, o auge dos prejuízos da enchente não coincidiu com o máximo das chuvas ou com a elevação excepcional do nível do rio. Os maiores prejuízos, aliás, não vieram diretamente do rio que banha a cidade. Eles surgiram como efeito da ação humana, que alterou e desequilibrou as condições naturais da área.
A maior cheia da história da cidade de Altamira foi provocada pelas sucessivas barragens construídas aleatoriamente ao longo do igarapé Altamira, ocupado por produtores rurais em função da rodovia Transamazônica. Ninguém parece ter pensado numa hipótese factível com a nova paisagem: o que aconteceria se uma das barragens se rompesse e o fluxo d’água seguisse pelas outras na direção da cidade? Uma tragédia, é claro. Foi o que aconteceu no domingo de páscoa, com danos como nunca houve antes, em função de chuvas muito mais intensas do que em outros invernos rigorosos. Foram 200 milímetros num único dia, o dobro do que choveu em Barcarena, onde o pampeiro provocou o transbordamento de bauxita contaminada na barragem da fábrica da Alunorte, poluindo os cursos d’água. O prejuízo foi multiplicado também porque a população de Altamira continuou a crescer acima da média e do recomendável, em parte por causa da atração pelas obras da hidrelétrica de Belo Monte, que a Eletronorte quer iniciar.
O polêmico projeto foi lembrado pelos que se surpreenderam com a súbita e rápida elevação do nível das águas, que arrastou tudo no seu caminho, em contraste com a evolução muito mais lenta do rio Xingu, nas suas cheias anuais. No momento em que a inundação chegou à sua altura máxima, o rio estava abaixo dos níveis médios do período. E se a cheia sazonal fosse grande? E se o rio já estivesse transformado em lago, com área de 400 quilômetros quadrados (ou 40 mil hectares), em frente a Altamira, pela represa de Belo Monte? A enxurrada encontraria uma barreira de água muito maior e a inundação seria muito mais desastrosa.
Numa das raras interpretações corretas que a enchente recebeu, Rodolfo Salm, professor da Universidade Federal do Pará, observou, em artigo escrito para a revista eletrônica Correio da Cidadania, que os moradores da cidade diziam “que o estrago teria sido ainda maior se o Xingu não estivesse tão baixo para esta época do ano, facilitando o escoamento do imenso volume de água”. Imaginando o pior, ele pergunta: “como teria sido se este igarapé que corta a cidade já estivesse barrado em um nível muito mais alto pela hidrelétrica de Belo Monte”?
Citando Oswaldo Sevá, professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, de São Paulo, Salm respondeu a essa interrogação: “se essas obras já tivessem sido realizadas a água teria invadido a avenida Beira Rio, todo o centro comercial, o novo hospital regional, o cemitério e até mesmo a sede do consórcio Belo Monte. Ou seja, provavelmente tudo que estivesse pelas cotas
Mesmo desconsiderando a probabilidade da ocorrência de eventos extremos como estes, ele considera que “os impactos da construção da maior hidrelétrica do Brasil, prevista para Altamira, seriam devastadores. O projeto inclui a conversão definitiva dos seus igarapés em corpos de água estagnada e poluída (numa área muito maior do que a área oficialmente inundada) e a criação de outras zonas de água parada em áreas baixas da cidade”.
Assim, haveria impactos na qualidade dos poços, devido à elevação do lençol freático. “Dá para imaginar como a cidade ficaria quando chovesse, inundando tudo. Para não falar dos impactos do reassentamento de 22% da população (16 mil pessoas) e a imigração prevista de cerca de 34 mil novos moradores, entre trabalhadores e suas famílias, durante as obras”, imagina Salm.
Ele conclui que a inundação de Altamira “serviu para reforçar a idéia presente na cabeça da maior parte da população, que liga barragens à idéia de catástrofes ou desgraças. O telejornal da Rede Globo jamais ousaria admitir ou divulgar o fato, mas o desastre representou um forte revés para a idéia mirabolante de construir uma barragem gigantesca no rio Xingu”. Salm espera que todos “tirem alguma lição dessa tragédia”. Ele, um dos opositores do projeto da hidrelétrica, pretende dar conseqüência à sua lição pessoal:
“O nível da água do igarapé em poucos dias normalizou-se, mas a marca do nível da água ainda é visível, alta, na parede das casas. Aos defensores da barragem, interessa que isso seja esquecido o mais rapidamente possível. Daí a importância de que os que lutam contra ela façam, urgentemente, marcas indeléveis em todos os lugares possíveis, casa, postes, muros, árvores. Apesar dos prejuízos, da tristeza e da revolta, esta cheia pode ser transformada numa arma política contra Belo Monte, num grande trunfo contra as obras e, assim, evitar a possibilidade da ocorrência no futuro de catástrofes de magnitude infinitamente superior”.
Salm, doutor
A interpretação pode ser considerada radical ou irreal, mas os fatos que a motivaram são concretos. Se deles não é inevitável a conclusão a que Rodolf Salm chegou, os que defendem outras posições precisam rever suas análises para nelas incluir o fato novo da surpreendente enxurrada que destruiu parte da cidade de Altamira. O modelo construído para viabilizar ou justificar a usina de Belo Monte terá que incorporar essa má novidade, que dele não fazia parte, sob pena de se tornar insustentável. Os fatos novos podem não gerar os efeitos previstos por Rodolfo Salm, mas eles ao menos terão que ser considerados como novas hipóteses, a serem testadas e demonstradas. A viabilidade ambiental da obra está em causa novamente. No mínimo, pode ser considerada incompatível a manutenção das barragens do igarapé Altamira com o projeto da barragem de Belo Monte.
Situações como esta já são graves e exigem uma atenção particular. O dado que mais impressiona são os quase 20% de alteração da cobertura florestal original da região, a mata densa que recebeu de batismo, de Humboldt, o nome de hiléia. Esta é a marca humana profunda e, em muitas situações, definitiva: o rompimento do equilíbrio perfeito da natureza, em circuito fechado, da água à floresta, um organismo harmônico. A enchente em Altamira foi agravada pelo rompimento de barragens construídas pelo homem, sem consideração pela natureza. O espaço urbano avança sobre terreno que, antes, era domínio das águas. Um dia, as conseqüências dessa agressão se manifestam.
Mas talvez o cenário fosse muito menos desastroso se a Amazônia merecesse a atenção que só provoca quando o fato está consumado, quando o acontecimento se acomoda na previsão de que seu desenvolvimento deve ser realizado em meio ao caos, aos conflitos, a um enorme desgaste humano e desperdício econômico. Um especialista do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de São Paulo) disse no Jornal Nacional da TV Globo que os indicadores de um período de chuvas fora do comum começaram a se consolidar
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