Lúcio Flávo Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
Com investimento equivalente a 3,7 bilhões de dólares (5,3 bilhões de reais), o projeto da Aços Laminados do Pará (Alpa), em Marabá, é um dos maiores negócios em andamento no Brasil. Na semana passada ele foi o tema de uma audiência pública, que atraiu quase duas mil pessoas em Marabá mesmo. Ao final, quem era a favor teve mais motivos para reforçar sua posição e quem era contra não arredou pé de onde estava. Como sempre acontece em tais situações, as vozes dissonantes do coro majoritário pediram novos debates. A “questão” ainda não estaria amadurecida o suficiente para possibilitar uma decisão democrática sobre a implantação do projeto.
É verdade que o domínio do tema permanece restrito, mas não sairá desse nível mesmo se mais dezenas de audiências públicas forem promovidas. Esses encontros se transformaram em autênticos “cabos-de-guerra” entre grupos a favor e contra. O auditório assumiu a condição de platéia circense, ainda que na sua versão eletrônica pós-moderna, a da televisão (e suas extensões culturais e tecnológicas, como a internet). Ainda que a discussão seja estendida a anfiteatros da democracia direta à moda clássica dos gregos, é de se duvidar que a plena consciência seja o combustível para as deliberações. Os grupos se moverão como as massas em geral, seguindo palavras de ordem e resumos simplificados e arbitrários.
Foi por perceber essa situação que as empreiteiras Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht produziram, junto com a Eletrobrás, uma versão executiva do Relatório de Impacto Ambiental do aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte, O resultado foi um livro de 197 páginas didático, claro, bem informativo. Podia ser lido, entendido e servir de base para aceitação ou crítica por qualquer pessoa, mesmo o não iniciado na complexidade de problemas tratados. Claro que não era satisfatório para o técnico e o especialista, sobretudo aquele que está fora da bitola dos “barrageiros” ou dos meramente “desenvolvimentistas”.
As coisas começam a desandar quando o simples interessado ignora o material produzido pelos promotores das obras, por considerá-lo suspeito ou contaminado pelo vírus da malignidade incurável, e o especialista não se aprofunda nos projetos completos, fazendo uma leitura superficial ou “a vôo de pássaro”. O debate se torna viciado e o círculo vira quadratura. A decisão passa a depender da força de cada lado, da astúcia, do acaso ou de fatores menos deletérios – e muito mais gravosos.
Todos os empreendimentos complexos projetados para a Amazônia deviam começar por uma intensa e profunda discussão técnica em lugares adequados, como os acadêmicos (mas nunca restrita aos acadêmicos). As partes, munidas dos seus instrumentais teóricos e práticos específicos, e movidas pelos compromissos dos seus ofícios, submeteriam os projetos aos testes de consistência.
Essa filtragem evitaria que falhas primárias só viessem a ser detectadas nas massivas audiências públicas, desviando o principal para o acessório ou sanável. Solidificado e coerente, ajustado ao rigor técnico-científico, o projeto passaria para a crítica da sociedade e a abordagem política. Essas condições é que deviam ser a marca das audiências públicas, exigidas para a concessão do licenciamento ambiental, em caráter consultivo, não como instância deliberativa (que é o Conselho do Meio Ambiente). Sem a discussão restrita no primeiro estágio, de consolidação, o circo armado nas audiências se torna inócuo. A definição na medição de forças pode atender a vários interesses, não, necessariamente, ao interesse público. Mas por que não se modifica o rito? Quem tiver a prenda que a apresente.
Eu li o EIA-Rima produzido (mais uma vez) pela Brandt, de Belo Horizonte, terra de origem da antiga Companhia Vale do Rio Doce, e apresentado em outubro do ano passado. É um bom documento, praticamente esgotando o elenco dos impactos socioambientais positivos e negativos do projeto. Nada ficou de fora. Não posso garantir se todos os pontos foram tratados satisfatoriamente, mas eventuais insuficiências não constituem o aspecto mais importante da abordagem.
O principal é o acompanhamento, em tempo real, de cada etapa da implantação da siderúrgica. Só assim será possível identificar seus efeitos, sua adequação à previsão e as providências para evitar, circunscrever, mitigar ou eliminar as conseqüências ruins dessa intervenção. O fundamental, portanto, é a construção de um centro de monitoramento do projeto, sujeito não só à fiscalização dos representantes dos órgãos públicos competentes como dos representantes da sociedade civil, devidamente credenciados para essa tarefa.
Uma unidade do porte industrial da Alpa, produzindo 2,5 milhões de toneladas anuais de placas de aço, precisará de um apreciável volume de energia. A previsão é de 107 megawatts. A empresa será auto-suficiente, graças a dois turbo-geradores, com potência para 130 MW. Na folga, poderá ceder energia para Marabá. A empresa assegura que utilizará gases de processo para a geração, mas provavelmente terá também que recorrer a carvão mineral. Ela importará 1,9 milhão de toneladas por ano, principalmente para transformar em coque, que, junto com um milhão de toneladas de calcário, entrará no alto-forno para produzir gusa, da qual sairá a bobina quente para as placas finais. Esse processo precisa ser acompanhado com extrema atenção para evitar a poluição do ar.
Outro momento vital está relacionado à água. Captando mais de mil metros cúbicos por hora, a siderúrgica terá que funcionar em circuito fechado de reciclagem (como em relação a todos os seus insumos) para evitar um impacto mais forte sobre a hidrografia da área. Ela precisará descartar 1,3 milhão de metros cúbicos por ano de resíduos perigosos (além de embarcar para fora 100 mil toneladas de coque excedente e 587 mil toneladas de escória). O centro de monitoramento em tempo real é indispensável para o controle dessas operações.
Questões como essas têm tal característica técnica que não deveriam mais estar provocando celeuma intensa, como ainda acontece. Se persiste a desconfiança é porque a imagem de seriedade e compromisso das empresas ainda não se consolidou (e algumas não parecem empenhadas em conquistar esse troféu). Da mesma forma, alguns representantes da sociedade não têm desempenhado com seriedade o papel de intermediação que lhes cabe. Um bom e acessível núcleo de acompanhamento parece ser a melhor maneira de resolver esse impasse.
Mas há ainda questões pendentes, que não constam do processo de licenciamento e por isso não estão no EIA-Rima. Uma delas é sobre o impacto humano da obra. Durante sua implantação, a siderúrgica vai gerar 16 mil empregos. O número cairá para um terço quando ela entrar em operação, em dezembro de 2013, se o cronograma atual for cumprido. Os empregos diretos permanentes serão ainda menores: 2.600. Os outros 2.500 serão terceirizados. É preciso ter esses números em consideração para evitar uma inserção traumática do empreendimento na região e, sobretudo, em Marabá.
A cidade tem crescido de forma caótica há vários anos. A violência é sua marca histórica, desde as origens, em função dos ciclos de presença e ausência dos homens, que se deslocavam da cidade para as áreas de extrativismo no interior, e voltavam trazendo (ou encontrando) os impulsos do conflito. Essa característica se multiplicou várias vezes com os “grandes projetos”, consagrando tristemente a cidade como “Marabala”.
Deve-se treinar com urgência mão-de-obra qualificada e semi-qualificada no próprio local para tentar reduzir a intensa imigração previsível (e já em curso). Deve-se também preparar pessoas para criarem negócios destinados a atender a terceirização, multiplicando sua irradiação. A Vale não tem interesse em nada além da placa de aço, um produto que não é nobre na atual configuração do mercado siderúrgico. Aparentemente, é vantajoso avançar – mesmo que seja só até esse estágio – na verticalização. O Brasil é responsável por 18% do minério de ferro (com o restante da América Latina, a participação chega a 25%) e apenas 2,5% da produção de aço.
Para que a produção da Alpa conquiste novos mercados ou desloque fornecedores, em especial no mercado asiático, é preciso reter o custo de cada tonelada num valor entre 400 e 500 dólares, segundo o projeto. Os chineses, que estão um degrau acima (entre US$ 500/600), e os japoneses (US$ 700) poderão achar melhor importar do que produzir placas.
Mas é bom não esquecer que o principal problema dos chineses é o minério, do qual só têm em seu território 14% do que precisam para seus 500 milhões de toneladas de aço, que correspondem a 38% do mercado mundial. Nesse caso, a Vale exportará tudo que puder. A verticalização não irá além. A relação custo/benefício entrará em desequilíbrio. E alguém que fizer um cálculo mais sofisticado em torno do valor comercial e do teor de hematita no minério de ferro de Carajás (de 65%), ficará na dúvida sobre os ganhos com sua queima para chegar à pureza de 94% na gusa. Ou mesmo sobre as placas de aço.
Nessa avaliação, deve-se levar na devida conta o significado de instalar uma aciaria de médio porte (para os padrões atuais) no interior da região amazônica, ao invés de seguir a rotina da fixação no litoral. Em Minas Gerais, essa decisão, que já tem mais de meio século (a partir da inauguração da siderúrgica da Mannesmann, o último ato de Getúlio Vargas, na companhia de Juscelino Kubitscheck, antes de se suicidar, em 24 de agosto de 1954), teve um efeito benéfico inegável. Mas os mineiros procuraram não ficar dependentes de uma só aciaria nem do processo siderúrgico. Buscaram a diversificação e o maior dos efeitos multiplicadores possível. É a diretriz que também deve ser buscada desde já na região do Tocantins-Araguaia paraense.
Ainda na fase de projeto, a Alpa já motivou iniciativas como a terceira fase do distrito industrial de Marabá, em localização melhor do que as duas etapas anteriores (embora sob uma controversa desapropriação da área), e o desvio de um trecho da rodovia Transamazônica. As eclusas de Tucuruí, vitais para o projeto, estão em vias de conclusão. Mas ainda será preciso investir – e pesado – para viabilizar a hidrovia de 511 quilômetros entre Marabá e Vila do Conde, onde também serão exigidos custos para a capacitação do porto para as novas cargas.
A empresa precisa participar dessas obras, sem as quais o fluxo poderá continuar a ser feito pela ferrovia privativa da Vale, até São Luiz do Maranhão (que tem o inconveniente de estar 220 quilômetros mais longe do que Vila do Conde e ter um frete mais caro). O terminal hidroviário em Marabá não poderá ser exclusivo da Alpa e dos seus produtos: terá que prever carga geral para proporcionar benefícios maiores.
A agenda ainda é grande e repleta de lacunas, que não serão preenchidas se o tratamento da questão for emocional ou baseado em informações superficiais, restritas ou desligadas de uma visão de conjunto. Como, infelizmente, parece estar acontecendo, mais uma vez, em relação a um “grande projeto”.
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