Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
Com a autoridade de ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado, a desembargadora Albanira Bemerguy, em audiência pública do órgão especial, realizada no final do ano passado (ver Jornal Pessoal 457), se referiu a um desembargador “que deixou dois mil processos, se aposentou belo e faceiro e bonitinho”. Foi-se indiferente à “herança maldita” que deixou para os colegas que permaneceram na ativa, dentre os quais os processos seriam redistribuídos (à média de quase 70 por desembargador). A magistrada não citou o nome do cidadão que se comportou de forma tão irresponsável no desempenho do mais alto cargo da magistratura estadual, talvez detendo um recorde nacional ou mundial de processos submetidos ao chamado “embargo de gaveta”, um dos males da justiça e do serviço público em geral. Mas as expressões “belo, faceiro e bonitinho” não eram gratuitas. Visavam ajudar a identificar o desembargador, sem acarretar o ônus da prova a quem acusa ou a reação do acusado, em defesa de uma honra fictícia. Não houve um único comentário no plenário.
Os juízes parecem ter-se acostumado a ouvir informações e denúncias que, fora das dependências do judiciário, costumam provocar escândalo e alguma conseqüência, como se vivessem num mundo à parte da sociedade, numa bolha brilhante. Ao perder a disputa para o atual presidente do TJE, Rômulo Nunes, a desembargadora Maria Helena Ferreira disse que a distribuição de processos na justiça paraense era viciada. Mesmo tratando-se de uma denúncia de alta gravidade, não houve desdobramento proporcional a essa gravidade. Nem nesse caso nem em numerosos outros, que acabam sendo sufocados internamente ou entregues à estratégia da desmemoria, que tudo apaga.
No entanto, essa sucessão de conivências e omissões, próprias do forte espírito corporativo do judiciário, criou um ambiente propício para acolher uma ofensiva desencadeada no mês passado pela Ordem dos Advogados do Brasil. Tudo começou quando o presidente da OAB nacional, o paraense Ophir Cavalcante Júnior, declarou, em Brasília, que “a grande maioria dos juízes não cumpre seus horários e trabalha,quando muito, no ‘sistema TQQ’”, apenas às terças, quartas e quintas-feiras.
É o mesmo sistema adotado pelos parlamentares federais, mas eles contam com a atenuante de não residir onde estão as sedes da Câmara Federal e do Senado, e de admitirem que o fato é verdadeiro. Já os magistrados não só reagiram negando a afirmativa do presidente da OAB como passaram da defesa ao ataque, ameaçando processar Ophir e, em seguida, o presidente da entidade no Pará, Jarbas Vasconcelos, que repercutiu a denúncia e lhe deu conseqüência.
Jarbas convocou 16 subseções e mais advogados na capital para verificar o trabalho dos juízes nas 147 comarcas pesquisadas (de um total de 153 instaladas) em todo Pará. A “Operação TQQ” chegou à conclusão de que 60,5% dos juízes estavam ausentes das suas comarcas naquela segunda-feira, 22 de fevereiro. Mesmo em Belém, 35% dos magistrados não compareceram e outros chegaram depois do horário de início do expediente, às oito horas. Estava provado o TQQ, referência corriqueira nos corredores forenses. Era conhecida uma juíza (depois desembargadora) que não trabalhava às sextas-feiras. Gastava esse dia no supermercado, segundo seu assessor. E todos aceitavam a rotina, inclusive os advogados.
Imediatamente juízes tidos como ausentes recorreram à entidade de classe para desdizer a OAB, garantindo que estavam nos seus postos quando da blitz, outros acusaram a Ordem dos Advogados de exorbitar as suas funções, agindo como órgão policialesco. Daí à proposta de ação judicial em defesa da honra coletiva foi um passo. Estava criado um clima de guerra entre a magistratura e a advocacia, dois dos elementos necessários à realização da justiça (o terceiro é o Ministério Público, que se manteve em conveniente silêncio).
Hipnotizados pela mentalidade corporativa, os magistrados deixaram de lado o que há de verdadeiro nas alegações dos advogados, relembrado pelo ex-presidente da OAB/PA (e candidato derrotado na última eleição), Sérgio Couto, em artigo publicado em O Liberal: não foram os advogados “que disseram que a justiça do Pará era a quarta pior do país nas sentenças dos juizados especiais; a terceira mais congestionada da nação; a segunda pior em sentenças dos magistrados do 2º grau e a que menos apresenta casos novos por 100 mil habitantes”, dados apurados em levantamento do Conselho Nacional de Justiça.
Na primeira nota oficial que assinou, Jarbas Vasconcelos foi além: usando os mesmos dados do CNJ, disse que o Pará “é o terceiro Estado mais moroso da Federação, com uma taxa de congestionamento de 82%, bem como é o segundo pior do Brasil na produção dos seus magistrados – enquanto um juiz do Acre profere em média 1.926 sentenças por ano, um de Rondônia 1.715 e outro do Rio Grande do Sul 2.908 sentenças, o magistrado paraense profere somente 497 sentenças por ano. Ou seja, até 6 vezes menos que seus colegas de outros Estados do Brasil”.
Os números são verdadeiros e o próprio CNJ já cobrou as providências necessárias da justiça paraense. O que se pode dizer contra a iniciativa da OAB é que a entidade local se preocupou tanto em dar razão ao presidente nacional, cujo apoio tornou possível a eleição do presidente da OAB/PA, que deixou de lado as etapas que podiam ser percorridas na busca de solução e não apenas de confronto e notoriedade. O presidente da Ordem podia mandar um relatório circunstanciado às corregedorias – metropolitana e do interior – de justiça e cobrar medidas imediatas (elas acabaram dando prazo para receberem esses dados). Com base no documento, podia fortalecer a justa reivindicação de que os juízes residam nas comarcas para as quais foram designados, ao invés de serem apenas visitantes (quando podem, moram na capital). A audiência com o presidente do tribunal com esse fim, no dia 2, acabou cancelada pelo desembargador (e depois remarcada para o dia 12).
Sem as respostas necessárias e sem as providências concretas, a OAB partilharia com a opinião pública o desenvolvimento de uma campanha para melhorar – e muito, como é necessário – a prestação jurisdicional no Estado, que é gravemente deficiente. Talvez até se formasse um grupo executivo com representantes de todos os segmentos, inclusive da sociedade, para identificar os focos dos problemas e resolvê-los. Não só entre magistrados, mas também junto a advogados.
A OAB podia dar exemplo acabando com o sigilo adotado por seu tribunal de ética, que só indica as iniciais dos advogados processados, enquanto o Diário da Justiça dá o nome inteiro das partes nos processos judiciais, mesmo que as ações ainda estejam pendentes de decisão. Agiria de forma decidida e conseqüente, mas com equilíbrio, para não desencadear uma disputa política, como acabou acontecendo, e uma confrontação mais desgastante do que proveitosa. Ao final da qual, não é impossível que tudo volte a ser como dantes. Com famas indevidas.
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