domingo, 30 de maio de 2010

Fim da Última Hora: lembranças apressadas

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal

Há uma frase que soa como sentença nas redações: jornal não morre de véspera; mas, quando começa a morrer, não tem escapatória. A Última Hora do Rio de Janeiro morreu quando seu criador, Samuel Wainer, a vendeu para um grupo de empreiteiros, em 1971. Mas a certidão de passamento só saiu 20 anos depois. É um caso incrível: por duas décadas o jornal vegetou, servindo de pasto para vicejarem interesses paralelos ou antagônicos ao jornalismo. Foi uma fase exatamente igual à anterior, que também durou 20 anos, iniciada em 1951, quando Wainer fundou o jornal. Só que nessa primeira metade, a UH se tornou legenda, marco na história da imprensa no Brasil. Da segunda, ninguém mais lembra.

Mesmo assim, não acabou a curiosidade sobre o fenômeno. Quem ainda busca uma reconstituição mais convincente e substanciosa sobre as origens e o fim do jornal, foi atraído pelo título provocativo que Benício Medeiros deu ao seu livro: A rotativa parou! Os últimos dias da Última Hora de Samuel Wainer (215 páginas, Civilização Brasileira, 2009). Medeiros foi repórter nos estertores do jornal sob Wainer, continuou na profissão depois e nela se destacaria ainda mais. Parecia credenciado, se não a apresentar nova visão sobre os anos de glória do jornal, ao menos saciar a curiosidade dos seus leitores sobre como se desnatura agoniza e um grande jornal, visto a partir de dentro da redação, com intimidade. Os testemunhos disponíveis a respeito são francamente insatisfatórios no Brasil.

A situação continuará imutável. Talvez sem a intenção, Janio de Freitas já dá pistas nessa direção quando observa na orelha do livro (e bem que podia ser um alerta): “Este não é um livro de memórias, é um livro de lembranças”. É muito pouco para uma história tão patética. Benício, ao contrário do que diz seu apresentador, não tinha consciência na época da importância do que vivia e testemunhava. O que lhe sobrou não chega à memória: fica no plano da lembrança. Ela está bem narrada, tem trechos interessantes, mas frustra o título.

O autor pode se defender alegando que nunca pretendeu mais do que uma crônica de época. Desobrigou-se de consultar documentos, fazer entrevistas, forçar a memória. Mas é uma pena que sua pretensão não haja sido maior. Quando os irmãos Alencar compraram a UH, depois de terem arrendado um jornal ainda maior, o Correio da Manhã, em decadência forçada pelo regime militar, com o qual entrou em colisão, tinham como objetivo dar apoio à candidatura do então ministro dos Transportes, Mário Andreazza, à presidência da República.

Andreazza era dos poucos militares que saíram das casernas para a atividade política, em função do novo regime, sem estranhar a mudança. Era um autêntico anfíbio, como o paraense Jarbas Passarinho, o que mais ministérios colecionou, enquanto se mantinha no Senado. Mas a patente inferior de coronel foi fatal aos propósitos de Andreazza e ele teve que se contentar como ministro. O esquema jornalístico perdeu sua razão de ser. A UH foi passada em frente. O Correio da Manhã teve morte inglória.

No entanto, ao contrário da noção em geral aceita, quem se imortalizou foi o jornal de Edmundo, Paulo e Niomar Bittencourt. O Correio deve sua existência e seu alto conceito ao fato de ser um empreendimento autônomo, com marca pessoal e alguns princípios editoriais indeléveis. Já o nascimento da Última Hora resultou de outro projeto político, o de Getúlio Vargas, agora aplicado à fase democrática da sua passagem pelo poder. Sem o dinheiro do Banco do Brasil e a sombra do governo, espalhando-se sobre anunciantes e “apoiadores”, como hoje se diz, o jornal de Samuel Wainer não se consolidaria.

Ele sobreviveu ao fim de Getúlio, três anos depois de chegar ao mercado, mas o getulismo ainda era uma fonte de poder. Ressoava o bastante para favorecer a criatura impressa. Mas não por muito tempo e não ao custo Wainer. Todas as virtudes, conquistas e inovações do jornal resultavam da condição especial do seu dono, que era um verdadeiro jornalista, ao contrário da esmagadora maioria dos capitães da imprensa (que mal conseguem escrever um bilhete, como podemos constatar em nossa ilharga). Infelizmente, todas as deficiências, vícios e lacunas também.

Deve-se creditar a Wainer, porém, o mérito de, uma vez despejado do poder, que tanto perseguiu, ter-se comportado com dignidade até o fim dos seus dias, em 1980, aos 70 anos. O ostracismo não o deixou amargurado nem derrotado. Merecia uma lembrança mais exigente do que a que Benício Medeiros lhe dedicou.

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