Lúcio Flávio Pinto
O que aconteceu a Lyoto Machida que o fez perder a revanche contra o paraense Marcelo Shogun Rua, depois de lutar apenas três minutos do primeiro round, no dia 9, em Montreal, no Canadá, numa competição de Artes Marciais Combinadas (UFC, em inglês)? A primeira luta terminou em meio a dúvidas e críticas, mas, independentemente do resultado, Machida fez jus à sua fama. Vencera as 15 lutas anteriores, combatendo com pleno domínio de si, do adversário e do ringue, como um verdadeiro samurai.
Seu rosto não tinha marcas e sua jovialidade disfarçava a idade madura, de 31 anos, quando subiu novamente no tablado para o tira-teima com Shogun. Parecia consciente e aplicado à recomendação do seu pai e mestre: proteger a cabeça, não deixar que ela fosse golpeada.
O velho Yoshizo Machida sabia da profundidade do que dizia. Lyoto não tem a agressividade que um vale-tudo mal disfarçado requer. Não foi educado para ser um matador. Fora do ringue, é uma pessoa gentil, de voz macia, de conversa inteligente, um universitário. Precisa de muita concentração e determinação para se transformar num lutador disposto a tudo, especialmente a bater no oponente para destruí-lo. É deficiente no chão. Clássico demais.
Todas essas lacunas se revelaram quando ele caiu, sob o impacto do primeiro dos 11 socos que Shogun lhe aplicou em série contínua, e por ter escorregado quando do primeiro golpe. Estava à mercê da execução, cuja violência foi reforçada pela sua posição, com a cabeça contra o tablado, sem elasticidade para diminuir o impacto dos murros devastadores, absorvendo-os ao menos em parte. Mais alguns murros e talvez sua carreira estivesse liquida. Ou pior: sua vida.
Seu rosto provavelmente nunca mais será destituído de marcas e cicatrizes. A jovialidade poderá se tornar coisa do passado. E seus órgãos internos abalados? E sua psique? E os desdobramentos dessa derrota arrasadora: ela não estimulará a ousadia e a audácia dos adversários em potenciais, que o temiam até o nocaute? Ele poderá ter a vida dupla, de um jovem senhor desanuviado da brutalidade da combinação de várias lutas marciais em uma só, ou terá que se animalizar também? Ou não será melhor desistir dessa carreira de gladiador para velhos auditórios apenas maquiados de civilidade e civilização?
Um filho meu jamais subiria num rinque como aqueles que têm sido o lugar de trabalho de Lyoto Machida. Claro: sou estranho a lutas. Mas, se pudesse dar um conselho a ele, ao seu pai e aos seus irmãos, eu recomendaria se afastar dessa prática brutal em benefício do cidadão bom e admirável que ele é. Não sei o que o perturbou antes da luta com Shogun, que parecia impedi-lo de se concentrar suficientemente. Também não sei qual circunstância não lhe permitiu se preparar adequadamente para um desafio como aquele. Só sei que, nas duas vezes em que colocou o adversário no tablado, buscava ar pela boca e não conseguiu aplicar nenhum dos seus golpes potentes. Shogun se levantou e virou o jogo com uma facilidade surpreendente, que já fazia temer o que se seguiu.
Dentro do ringue, o que vi (e nunca mais quero rever) foi a destruição de uma pessoa que, momentos antes, parecia um guerreiro e, sob o impacto dos socos, que se multiplicavam pela conivência do juiz, se tornara um boneco de carne, osso e sangue moídos, espirrados, amassados. Tentei imaginar a dor lancinante que Lyoto devia estar sentindo naquele momento e o padecimento que se seguiu no hospital, na tentativa de se recuperar.
Tinha mesmo que imaginar. Depois do fraco noticiário da segunda-feira, os jornais de Belém se calaram na suíte da luta. Nenhuma notícia na terça-feira. No dia anterior, o primeiro depois do nocaute de Lyoto, o Diário do Pará parecia disposto a ampliar a má sorte do paraense adotivo, dando títulos quase irônicos ao noticiário e abrindo uma foto do momento em que Lyoto era massacrado. Já em O Liberal a cobertura do day-after contrastava com a dimensão que o jornal dos Maiorana deu à apresentação da luta, com um tablóide de quatro páginas na véspera, dedicado a exaltar os feitos do lutador formado em Belém na academia do pai.
Será que a cobertura superlativa do jornal dos Maiorana influiu no ânimo de Lyoto, infundindo-lhe excesso de confiança, que foi fatal diante da aplicação, concentração e gana do adversário, ferido em seus brios pela decisão da luta anterior, por pontos, que ele considerou errada? Não só ele, mas a maioria da torcida, que estava ao lado dele na revanche?
Já a repercussão desfavorável do jornal da família Barbalho era uma reação a um eventual acerto entre os Machida e os Maiorana, que transformaria o lutador num produto da “casa”, colocando o Diário em posição subalterna? O jornal dos Barbalho, se ficou atrás por deficiência própria, tentou compensar mantendo espaço para noticiar a chegada de Lyoto a Belém, às duas da madrugada, no mesmo dia, enquanto O Liberal nada publicou. O jornal dos Maiorana reagiu indo à entrevista coletiva de Lyoto, à qual o Diário não compareceu, e replicando a entrevista no dia seguinte, com alguns acréscimos.
Quaisquer que sejam os fatos por trás dessa cobertura desconexa, só sua existência pode servir de reforço ao pedido que, em nome dos admiradores de Lyoto e de todos os Machida, lhe faço aqui: deixe a luta profissional, praticada nessas rinhas mal disfarçadas, e abra novos horizontes na sua vida. Um desastre pode servir de inspiração a novos desafios para uma pessoa com as qualidades do mais bem sucedido de todos os atletas de combate que o Pará já viu se formar em seus limites. Não precisa ser mais no tablado, onde ele já provou suas qualidades e valor.
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