Com 134 milhões de eleitores e quase 29 mil candidatos nestas eleições de 2010, o Brasil agiganta-se como uma das maiores democracias eleitorais do mundo – curvando-se de dois em dois anos à soberania popular para a escolha dos governantes em duas grandes esferas de poder, o Executivo e o Legislativo. Pena que a Política, a mais importante fórmula para administração pacífica dos choques de interesses que permeiam qualquer sociedade, esteja a cada dia se tornando uma atividade perigosa e estigmatizada no fosso do crime. A criminalização da Política é um sintoma da carga pesada que se faz contra a democracia representativa.
A última investida leva o nome de Ficha Limpa – um atentado ao estado de direito chancelado por um Congresso Nacional emparedado, e imposto à Nação pela Justiça Eleitoral com efeito retroativo. Se a Lei Complementar n.º 135 que instituiu a Ficha Limpa já era inconstitucional, por considerar inelegível mesmo quem não foi declarado culpado, ou seja, condenado por sentença irrecorrível, assemelhou-se ainda mais a um monstrengo jurídico quando desrespeitou dois institutos legais vigentes: a anualidade das mudanças na legislação eleitoral, prevista no artigo 16 da Constituição, e a irretroatividade de qualquer diploma legal. A Constituição determina que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência.” Promulgada em abril, a lei da Ficha Limpa já está sendo aplicada antes das eleições de outubro. E o mesmo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que tomou esta esdrúxula decisão, abusando de seu poder normativo, como se fora um órgão revisor do Parlamento, decidiu que a lei tem o condão de retroceder no tempo e enquadrar como crime atos que na época em que foram praticados não o eram. Viola-se um dos mais antigos preceitos do Direito, burilado pelo jurisconsulto italiano Cesare Beccaria, o de nullum crimen nulla poena sine lege, acatado já no artigo primeiro do nosso Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina.”
Não importa que o projeto de lei da Ficha Limpa tenha origem popular. Se é lícito e desejável que a sociedade civil se organize para propor alterações no quadro jurídico-institucional do País, há de se levar em conta que a constituinte da opinião pública é a pior fábrica de leis. A praça é o espaço soberano do povo, para a política, o protesto e até a insurreição, mas nunca para a Justiça. Nosso maior jurisconsulto, Rui Barbosa, nunca escondeu seu horror “à execrável justiça das ruas”, pois sabia que toda corte montada na calçada vira um Tribunal de Lynch. Não deveríamos esquecer que no mais famoso julgamento da História, a turba consultada por Pôncio Pilatos libertou Barrabás e condenou Jesus Cristo à morte.
Sem dúvida existem políticos criminosos, mas querer varrê-los de cena cassando direitos gerais e ofendendo o estado de direito é, para citar o adágio famoso, mais que um crime, é um erro. Nesta questão dos direitos do cidadão não pode haver barganha. Quem abre mão de um direito em favor de outro, perde os dois. Como observou o jurista José Roberto Batochio, no artigo Eleições democráticas e Estado de Direito (O Estado de S. Paulo, 31/08/2010), “é juridicamente inaceitável que pela via do estupro constitucional se queira defender a virgindade da política.”
Entre as iniquidades destas excepcionalidades da lei da Ficha Limpa está a cassação preliminar, pelo TSE, da candidatura ao Senado do deputado Jader Barbalho. O nefando crime que o torna inelegível é ter renunciado ao mandato de senador em 2001. Como um capitão do mato da legalidade, a lei leva seus grilhões a uma viagem de volta no tempo para estabelecer que agora é delito o que há nove anos foi um simples ato de abdicação por iniciativa pessoal. Nem vale a pena discutir o disparate de a lei considerar crime – ao ponto de tornar um político inelegível por oito anos – o ato de renunciar a mandato para livrar-se de uma investigação legislativa, seja esta procedente ou fruto de interesses partidários. No caso, a alegação do então senador foi que havia um processo de “linchamento político” contra ele. Na minha opinião, realizou uma manobra defensiva inscrita na arte da guerra, a retirada estratégica. Do outro lado, com sua imaculada biografia, a despachar seus ebós políticos, estava ninguém menos que o paladino da moralidade Antônio Carlos Magalhães.
A boa notícia é que até as pedras sabem que a lei do Ficha Limpa será revista pelo Supremo Tribunal Federal em decisão a ser tomada antes de 3 de outubro – e as candidaturas perseguidas não sofrerão nenhuma restrição. Ainda ecoa na Praça dos Três Poderes a indignação jurídica de um ministro que acaba de se aposentar, o maragato Eros Grau: “A Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente, inconstitucional”, disse o ex-integrante do Supremo em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “Ficha limpa é qualquer cidadão que não tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado. A Constituição do Brasil diz isso, com todas as letras”, sustentou Grau, que infelizmente saiu antes de votar em causa tão importante. Mas há indicações de que ao menos cinco ministros do Supremo têm o mesmo entendimento. Oxalá acabem de vez com esta moda das leis justiceiras.
(*) Sérgio B. de Gusmão, paraense radicado em S. Paulo, é jornalista e escritor.
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