Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
Foto: G-1 |
Belém- Um arquiteto (na verdade, um mestre de obras) calculou o custo real do teatro por um valor entre 300 e 400 contos de réis. Mas quando foi inaugurado, em fevereiro de 1978, o orçamento oficial do Teatro da Paz foi declarado como sendo de 800 contos de réis. No dia da estréia, José Veríssimo estava lá presente, com seu olhar de crítico e sua argúcia de jornalista. “No meio daquele luxo, daquele esplendor, só uma coisa era feia, o teatro”, observou, com a autoridade de um dos mais notáveis intelectuais já nascidos no Pará.
Sua cáustica e impiedosa crônica saiu na íntegra em A Província do Pará de 17 de fevereiro, como poucas escritas para registrar no ato o nascimento do teatro e a apresentação do seu primeiro espetáculo. Mas quem se impressionou com as palavras do cronista?
Lidas hoje, elas parecem tão atuais quanto inócuas numa terra em que as obras públicas ou são de má qualidade ou são caras – ou as duas coisas ao mesmo tempo, quando não é o seu luxo que contrasta com a pobreza de meios do governo e do seu povo para manter a obra inaugurada (ou para tomar ciência e controlar o desvio das verbas públicas para fins ilegítimos ou deturpados).
Diante de realizações como o Hangar Centro de Convenções, a Estação das Docas, a Alça Viária, o Palácio da Justiça e quetais, as palavras do crítico seriam justas. Nem por isso, valorizadas. A exibição de suntuosidade costuma ter a função de reduzir o espectador, o cliente – e o contribuinte – ao burro da alegoria diante do palácio. Para fazê-lo suspirar. Não para pensar.
A jornalista e historiadora Rose Silveira resolveu ir conferir numa montanha de papéis oficiais, estocados em arquivos públicos sempre fracamente consultados, e olhar por trás dos cenários, a construção do Teatro da Paz e sua crônica real. O conceito de monumentalidade dos donos da obra e autores da sua escrita foi revirado de cabeça para baixo, a fim de que a realidade fosse recomposta na busca de uma visão social do monumento público.
Mesmo sendo a criadora da obra e do seu enredo, a elite não conseguiu domar plenamente a criatura. Uma vez colocada no espaço público, sua vida passou a ser partilhada por um universo mais amplo, inclusive pelos que não receberam convites nem faziam parte da corte. Como até mesmo os escravos, na fase transitória para a tardia libertação.
É sob essa nova perspectiva que aquele que é considerado um dos maiores orgulhos dos paraenses (e dos belenenses em particular) aparece em Histórias Invisíveis do Teatro da Paz (Editora Paka-Tatu, 287 páginas), originalmente a dissertação de mestrado da autora paraense na PUC de São Paulo, que virou seu primeiro livro com todos os méritos (suficientes para obter patrocínio do Banco da Amazônia à edição). Além de uma minuciosa e acurada reconstituição das lentas e polêmicas obras do teatro, Rose Silveira se esgueirou pelos registros da imprensa da época e procurou se sentir ao lado do cidadão comum (e até de escravos), que, contra um ambiente adverso, apareciam para ver os espetáculos e imprimiram sua marca no teatro
Uma das coisas que mais impressiona na vasta documentação reunida e processada por Rose é o artigo de José Veríssimo, às vésperas de migrar para a capital e se tornar um legítimo intelectual federal. Pelo que disse, pelo valor da obra e pelo seu significado, devia ter provocado mais do que chiliques e consternações. Era a intenção do crítico, consciente da importância – inclusive nacional, pela crescente participação do Pará e de Belém na cena brasileira da época – do tema abordado:
“Em um edifício que se quer dizer o primeiro do império, no seu gênero, em que se gastou perto de 800 contos, o papel que forra os camarotes é o mais ordinário e feio possível, os balcões dos camarotes são de madeira, as paredes são caiadas, as escadas nem envernizadas são e as cadeiras da platéia são n’ormal [deve ser erro de digitação]; o teto é de lona pintada grotescamente com umas figuras de deusas ou gênios que parecem saloias, vermelhas, feias, horríveis, de grandes seios caídos, como velhas amas, capazes de fazer morrer de vergonha ou de riso, um artista que tivesse a coragem inaudita de olhá-las dois minutos”.
Já seria o bastante para provocar a reação da opinião pública, mas Veríssimo reservava reparos ainda mais cáusticos à obra: “A entrada do teatro é desagradável, é feia. É baixa, chata, acachapada. E aquela brancura de cal e aquelas colunas de ferro, sem elegância nenhuma, dando-lhe o ar de armazém de estação de estrada de ferro. Nada mais, nada menos. A única qualidade boa deste teatro é ser fresco como nunca vimos em teatro nenhum”.
Além das restrições estéticas, as estocadas venenosas de Veríssimo chegavam ao desperdício, malversação e apropriação do dinheiro público considerável, um maná (ou mamata?) para os “honrados senhores que tem tido a fortuna de serem engenheiros fiscais... e muita gente mais”. Se Veríssimo não pode ser direto e específico nessa suspeição, Rose Silveira mergulhou pelos desvãos do litígio no “processo construtivo fraudulento” do teatro, que se prolongou por quatro anos, até a inauguração. E foi retomada com a “primeira grande reforma”, iniciada nove anos depois da estréia e esticada por mais três anos.
A nova reabertura ocorreu em 1890, infelizmente ponto final da pesquisa da autora. A maior e mais definidora de todas as reformas viria cinco anos depois, por iniciativa de Augusto Montenegro, que governava o Pará em parceria com Antônio Lemos, o intendente (prefeito) de Belém, na fase do mais genuíno despotismo esclarecido da terra.
Pois foi justamente a eliminação das feiúras tão apropriadamente denunciadas por José Veríssimo e as inovações introduzidas sob o comando de Montenegro que mudaram a face e as entranhas do teatro, respaldando-o com a qualidade que lhe deu “o caráter de monumento como patrimônio edificado”, apesar dos maus tratos e incompreensíveis que acompanham a – a partir de então – bela casa de espetáculos até hoje.
A tortuosa e acidentada evolução da obra, com acréscimos e supressões, aditamentos e novos contratos, transformando-se um insaciável “sorvedouro de recursos públicos”, revela o tipo de elite que tinha Belém, os arranjos que criou com os representantes do poder público e hábitos e costumes. Esse padrão haveria de surpreender ou chocar os visitantes, mesmo aqueles experimentados nessas tratativas, como Percival Farquhar, que construiu o porto da cidade e registrou seu espanto por lidar com tanta corrupção.
Espanto partilhado por nativos, como João José Pedrosa, que, em nome do governo, vasculhou as contas para avaliar o quanto o teatro onerava o erário, saindo-se com estas sábias e perenes observações, de 1882, que os ordenadores de despesas deviam levar em consideração (ou os contribuintes, à falta de previdência e escrúpulos dos gestores):
“Não quero condenar as edificações [...] mas o que quero assinalar é que conviria, talvez, olhar um pouco para o desenvolvimento das verdadeiras fontes de riqueza pública.
É preciso que aformosemos a capital da província. De acordo.
Mas o grau de prosperidade de toda a província é que deve servir de base para esse aformoseamento, para que ninguém se iluda do todo por essa pequena parte.
Construir, porém, obras de luxo, custosas, que absorverão as rendas da província, deixando-se o interior em abandono, é, a meu ver, um mal gravíssimo”.
Espera-se que alguém, tomando por base o livro de Rose Silveira, atualize o valor do teatro (pelo menos até a sua inauguração) para compará-lo às obras de hoje, padecentes do mesmo mal, iluminando assim a trajetória da história para a melhor compreensão da sociedade. E que a autora possa continuar sua pesquisa até a atualidade, a partir da reforma de Augusto Montenegro, completando a revelação que seu primeiro livro representa.
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