Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
Em 1975 a hidrelétrica de Tucuruí começou a ser construída no rio Tocantins, no Pará, 350 quilômetros a sudoeste de Belém. Viria a ser a terceira maior usina de energia do mundo. A Construtora Camargo Corrêa foi escolhida para instalar o primeiro canteiro de obras. Uma vez instalada no local, ganhou a concorrência principal. E lá permanece até hoje, sempre faturando, passados 36 anos.
O orçamento inicial de Tucuruí era de 2,1 bilhões de dólares. Quando chegou em US$ 7,5 bilhões, 10 anos depois, a rubrica específica desapareceu. Foi remetida das contas da Eletronorte, subsidiária da região norte, para a contabilidade da sua enorme controladora, a Eletrobrás. O preço final pode ter chegado a uns US$ 15 bilhões, sete vezes mais do que a previsão na largada da obra. Mas pode ter ido além, ninguém mais sabe ao certo.O que a Camargo Corrêa ganhou entre 1975 e 1984, quando a usina começou a funcionar, permitiu ao seu proprietário, Sebastião Camargo, se tornar o primeiro bilionário brasileiro na listagem dos mais ricos do mundo. Sua fortuna pessoal dobrou no período: de US$ 500 milhões para US$ 1 bilhão. Correspondeu ao lucro líquido acumulado nesse decênio, à boa média de US$ 50 milhões a mais por ano. Sem atualização monetária.
Ninguém protestou quando o canteiro secundário virou principal. Nem quando o contrato original foi seguidamente aditado. Ou dele derivaram outros contratos, na usina ou em uma de suas principais dependências, o sistema de transposição da enorme barragem de concreto, com mais de 70 metros de altura (correspondente a um prédio de 17 andares), que custou R$ 1,6 bilhão, o maior do país.
Nem quando o Tocantins, o 25º maior rio do mundo, com 2.200 quilômetros de extensão, cuja bacia drena 10% do território nacional, começou a ser aterrado para que do seu leito fosse erguida a represa, a obra pública que mais concreto absorveu no Brasil até então. Com o fechamento do rio, a água subiu e inundou uma área de três mil quilômetros quadrados, afogando milhões de metros cúbicos da floresta que havia em seu interior.
A legislação ambiental brasileira só começaria a nascer seis anos depois. Mas a Eletronorte sabia que Tucuruí causaria profundos danos à natureza, acima e abaixo da represa, por pelo menos 200 quilômetros a montante. Tratou de fazer um levantamento ecológico das consequências da hidrelétrica.
A tarefa foi realizada por uma única pessoa, em 1977, o americano Robert Goodland. Ele era o autor, com seu compatriota Howard Irvin, de um estudo extremamente crítico sobre a ocupação da Amazônia durante o regime militar. O título do livro, embora equivocado, dizia tudo sobre o seu conteúdo: “Amazônia: do inferno verde ao deserto vermelho”. Da tradução para o português foi expurgado todo um capítulo, sobre a matança de índios pelos projetos de “desenvolvimento”, embora a editora da publicação tivesse o selo da honorável Universidade de S. Paulo, a USP.
O levantamento que Goodland fez sobre o impacto ambiental da hidrelétrica de Tucuruí podia ser considerado apenas como um exaustivo roteiro para uma pesquisa muito mais ampla, complexa e detalhada – que nunca foi executada (talvez porque o estudo tenha sido contratado apenas para atender a uma exigência do Banco Mundial). Problemas que eram visíveis mesmo a olho nu só foram considerados pelos “barrageiros” quando se materializaram. Efeitos danosos que podiam ser evitados ou prevenidos foram deixados à própria sorte.
De Tucuruí, no Tocantins, para Belo Monte, no Xingu, caminhando para oeste do Brasil, como sempre, na sina (e sanha) dos sempre bandeirantes, muita coisa mudou – mas, talvez, não o substancial. Na semana passada, um grupo de manifestantes levou a Brasília um abaixo-assinado de 500 mil nomes contra a construção da usina, que ocupará justamente o lugar até agora de Tucuruí no ranking das maiores hidrelétricas do mundo.
A caudalosa adesão de subscritores do manifesto dificilmente sensibilizará aqueles que, 20 anos depois de começarem a tratar da hidrelétrica, não têm mais dúvida alguma de que ela precisa ser construída. De qualquer maneira.
A correlação de forças não é a mesma de 1975. Por trás do selo de autorização não há uma ditadura, como então. Mas o Estado (no caso, personificado na União Federal) pode muito. Talvez ainda mais do que a sociedade. A norma processual do licenciamento ambiental foi violada para dar passagem a uma figura que o código ecológico desconhece: a “licença de instalação parcial”.
O que ela é senão a versão atualizada ao mundo jurídico da figura concreta do canteiro secundário de Tucuruí em 1975? A obra pode não começar (ou jamais vir a ser legalizada), mas seu canteiro já estará pronto. Os 19,5 bilhões de reais de financiamento de longo prazo do BNDES (num orçamento global de R$ 24,7 bilhões, ainda inconsolidado) podem não sair, mas até o final do próximo mês um bilhão de reais do “empréstimo ponte” já terá sido aplicado para executar a licença parcial. E o fato estará consumado, assim como consumatum sunt Santo Antônio e Jirau, bem mais a oeste (já quase no fim da rota dos bandeirantes em torrão pátrio), no Estado de Rondônia e no rio Madeira, o mais caudaloso afluente do oceânico rio Amazonas.
Não por acaso, os homens que decidem são os mesmos ou é o mesmo quem os patrocina, mesmo quando aparecem novos nomes: o mais uma vez presidente do Senado, o ex-presidente da república, José Sarney.
As três mega-hidrelétricas previstas para a Amazônia (sem contar outras cinco ainda em conjecturas para o vale do Tapajós/Teles Pires) representam capacidade instalada de 17,4 mil megawatts (20% a mais do que Itaipu), ainda que apenas metade desse potencial constitua energia firme (disponível ao longo do ano), ao custo de R$ 43 bilhões.
Esses números soam como poesia, para quem dispõe do poder decisório, por vários ângulos e perspectivas, enquanto as críticas e reações a esses projetos lhes chegam aos ouvidos como cacofonia irrealista, absurda. O Brasil não é o mesmo de 1975. Mas para esses cidadãos é como se fosse. Ao menos quando se trata da Amazônia. Para eles, a história se escreve com bulldozers.
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