segunda-feira, 18 de julho de 2011

Cabelo novo, vida nova

A paraense Cristina Santos pediu demissão de seu emprego e fundou uma entidade que faz perucas para mulheres vítimas de acidentes com barcos

Anna Carolina Lementy 
Revista Época

A assistente social Cristina Santos, de 42 anos, não conseguiu ficar indiferente à manifestação que presenciou na Praça do Relógio, em Belém, onde mora. Em uma manhã do ano passado, ela viu um grupo de mulheres pedindo atenção às vítimas de um tipo de acidente comum na Amazônia. Como a geografia da região é recortada por rios e igarapés, muitos moradores usam pequenos barcos para se deslocar. Mas o motor das embarcações esconde um perigo: o cabelo dos ocupantes pode enroscar no eixo do motor. A pele que recobre o crânio é arrancada e o cabelo não volta a crescer. Em alguns casos, as vítimas perdem as sobrancelhas, as pálpebras e as orelhas.
Nos últimos 11 anos, foram registrados 231 acidentes, dois deles com homens. Desde 1982, um fatal. As mulheres estão entre as vítimas mais frequentes por causa do comprimento do cabelo. A perda do couro cabeludo causa dores na cabeça pelo resto da vida. “Há também o sofrimento emocional, porque essas mulheres perdem a identidade”, diz o cirurgião plástico Victor Aita, que já atendeu centenas de pacientes com o problema. 

Cristina decidiu ajudar essas mulheres ao ouvir o relato emocionante de uma das vítimas. “Ela disse que não podia sorrir nem chorar porque lhe doía a cabeça. Choramos juntas”, diz Cristina. Ela não tinha um plano definido. Só a certeza de que precisava tomar uma atitude para devolver a autoestima para aquelas mulheres. 

Ainda em 2010, começou a abrigar as vítimas que deixavam o Espaço Acolher, projeto da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, responsável pelo tratamento de quem sofre esse tipo de acidente. O número de mulheres amparadas por Cristina aumentou tanto que ela não tinha mais onde hospedá-las. Escreveu para um programa de TV que, em parceria com a prefeitura de Belém, construiu uma sede para seu projeto. O prédio ficou pronto em janeiro e a entidade ganhou nome: Organização Não Governamental dos Ribeirinhos Vítimas de Acidentes de Motor, conhecida pela abreviação Orvam. Hoje, a entidade atende 50 mulheres. Elas fazem cursos de corte e costura e são atendidas por estudantes de assistência social, fisioterapeutas e uma psicóloga. Todos voluntários. 

A Orvam também tenta resgatar a autoestima das vítimas. Com a ajuda do cabeleireiro Luiz Crispim, de São Paulo, as mulheres estão aprendendo a confeccionar perucas para ajudá-las a superar o trauma e a recuperar a vontade de se olhar no espelho. “Depois de perder o couro cabeludo, passei cinco meses internada, com depressão”, diz Regina Formigosa de Lima, de 38 anos. Ela sofreu o acidente quando tinha 22 anos e passou a usar um lenço embaixo de um chapéu para sair na rua. Na escola, os colegas achavam graça em lhe puxar o chapéu. Constrangida, abandonou os estudos. Regina foi uma das primeiras a receber uma das 16 perucas já confeccionadas na Orvam.
231 acidentes nos últimos 11 anos deixaram homens e mulheres sem o couro cabeludo no Pará

Marcos Barbosa/ÉPOCA
MUDANÇA
Ana Maria de Vasconcelos e sua nova peruca (à esq.) com a criadora da Orvam, Cristina Santos. O aplique ajuda as vítimas a recuperar a autoestima
As perucas da Orvam têm a vantagem de ser feitas com cabelo de verdade. Existem perucas com fios sintéticos. Mas têm aparência artificial e são menos confortáveis porque esquentam demais. Usar uma peruca com fios naturais é a chance que essas mulheres têm de levar a vida o mais próximo do normal. O problema é que usar um aplique feito com fios naturais custa no mercado cerca de R$ 2 mil, quantia que as mulheres atendidas pela Orvam não podem desembolsar. A solução foi apelar para as doações de cabelo. Mais de 150 voluntárias mandaram mechas para os apliques. Uma colaboradora mora no Japão e fez questão de enviar seus fios pelo correio. A estudante de filosofia Raquel de Jesus Castro doou 75 centímetros de cabelo há um mês. Fazia três anos que ela não passava perto de uma tesoura. Fez questão de levar o cabelo até a ONG e, no caminho, convenceu a vizinha a doar um aplique que não usava mais. Conseguiu outro com sua cabeleireira. “Queria que meu cabelo crescesse mais rápido para doar de novo”, diz Raquel. 

O benefício para as vítimas é imediato. “Com a peruca, me sinto mais bonita”, diz Ana Maria de Vasconcelos, de 20 anos. Ela sofreu o acidente aos 14 anos. Deixou de sair de casa e abandonou a escola. Agora, com a peruca que ganhou, aguarda uma cirurgia do governo para reconstituir sua orelha, marcada para setembro. 

Outras 34 mulheres estão na fila de espera para receber uma peruca da Orvam. Mas a entidade não conta com todos os recursos de que precisa. Para cuidar do projeto, Cristina pediu para ser demitida de seu cargo em um órgão do governo federal há um mês. Tem pagado as contas com o seguro-desemprego. Uma pequena parte da renda da ONG vem da venda de calendários que custam R$ 10. Nas fotos, as mulheres da Orvam mostram pontos turísticos do Pará. Um supermercado da região doa cestas básicas. Doações maiores, em dinheiro, não podem ser recebidas por enquanto. De acordo com a legislação, a entidade deve ter mais de um ano para recebê-las. Enquanto isso, Cristina organiza os documentos necessários para formalizar o estatuto social e seguir ajudando outras mulheres. “Penso em quantos sonhos foram tolhidos por esses acidentes”, diz Cristina. “É uma alegria vê-las retomar a vida.”

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