Lúcio Flávio Pinto
Em 7 de setembro de 1961 o advogado gaúcho João Belchior Marques Goulart, aos 42 anos, tomou posse como presidente da república, depois de duas das mais dramáticas semanas da história brasileira. Esperei pela comemoração – ou ao menos o registro – adequado da data até o último dia de setembro. Para meu espanto, num país dado às efemérides, nada veio. O cinqüentenário redondo passou em branco.
É incompreensível. Naqueles dias, o Brasil esteve às portas de uma guerra civil, que certamente seria muito pior do que a insurreição paulista de 1932. A insubordinação de São Paulo às então ensaiadas pretensões ditatoriais de Getúlio Vargas não passou de ensaio para um confronto direto entre dois poderes, o político e o empresarial. Seu símbolo maior foi a batalha de Itararé, aquela que nunca houve.
A tradição brasileira de ruptura da ordem constitucional, sempre declarada como democrática na lei suprema, vinha sendo a dos golpes pelo telefone. Os chefes militares se comunicavam para medir forças e aquele que tivesse mais efetivos era declarado vencedor, fazendo-se a sua vontade. As tropas podiam ir às ruas, mas o fator decisivo era a confabulação dos seus comandantes.
A crise desencadeada em 25 de agosto de 1961 se apresentava completamente original, mesmo na tradição dos pronunciamentos militares do continente ibero-lusitano nacionalizado. Em pleno dia do soldado, o presidente da república amanhecia com um pedido de renúncia irrevogável do cargo. Mesmo o mais fecundo dos profetas acordara naquele dia certo de que o feriado seria o de rotina. Crises havia, de diversas naturezas. Mas a autoridade do advogado e professor de português Jânio da Silva Quadros, de 44 anos, permanecia intocada.
Essa autoridade provinha de uma votação popular maciça na eleição do ano anterior. Embora fosse o vitorioso com 48% dos votos (não havia então a necessidade de maioria para evitar o 2º turno, como hoje; era turno único), obteve a maior quantidade de votos (seis milhões) conferida a um político no Brasil (10% do que Lula recebeu em 2006) e a mais larga das diferenças já impostas ao concorrente mais próximo, o prussiano marechal Henrique Duffles Teixeira Lott, ex-ministro da guerra (ministério extinto em 1964, junto com a patente de marechal).
Seria, finalmente, a derrota de Vargas, ditador por 15 anos a partir da revolução dos tenentes em 1930 e presidente constitucional entre 1951 e 1954, quando se suicidou para não ser deposto e deixou sua carta-testamento como a bandeira de luta do trabalhismo, a vertente mais anti-golpista da política institucional brasileira.
Jânio era candidato de uma coligação liderada pela UDN (União Democrática Nacional), um amplo espectro de matizes ideológicos, do centro à direita, dedicado permanentemente a riscar do mapa o legado de Getúlio. Seus principais líderes eram as famosas viúvas carpideiras, a rondar permanentemente os quartéis emulando golpes de estado.
Mas Jânio não era a UDN. Era, na verdade, o seu oposto. Em sua mente atormentada as palavras do ditador populista grelavam como sementes híbridas. Imposto aos udenistas por falta de candidaturas mais fortes para enfrentar a coligação PSD/PTB, que estava no poder, Jânio foi aceito a contragosto. Seria o aríete para derrubar o portal getulista. Depois, seria abandonado.
O raciocínio, com objetivo oposto, era partilhado pelo governador de São
Paulo, detentor da mais meteórica carreira política registrada até então (de vereador a chefe do executivo estadual em eleições sucessivas e memoráveis, uma atropelando o mandato conquistado na anterior). Jânio criou o Movimento Popular JQ para ter uma estrutura própria, inteiramente sob o seu controle, à margem da UDN e de todos os demais partidos organizados, que lhe causavam repulsa (rejeição partilhada pelo eleitor médio, carente de heróis, suscetível aos carismas).
Era a primeira ferramenta para o golpe, que provavelmente já deambulava pelo seu cérebro, em meio a vapores etílicos. Estratégia que se confirmou quando, na presidência, designou interventores informais em todos os Estados, como delegados pessoais, aptos a cumprir suas ordens. Essa estratégia combinava com a manobra anterior, durante a campanha eleitoral: ao invés de apoiar seu companheiro de chapa, o mineiro Milton Campos (daquele grupo de udenistas refratários ao golpismo de Carlos Lacerda), mandou carregar a votação em João Goulart, o vice do marechal Lott. Jango foi o eleito (a votação nessa época não era casada: podia-se votar no presidente de um partido ou coligação e no vice de outro grupo). Com camuflagem, o varguismo prosseguia, combinando populismo com desenvolvimentismo.
Lacerda, governador da Guanabara (Estado-fantoche criado pela mudança da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília), criou uma crise séria ao juntar fatos desconexos, misteriosos e insondáveis, mas plenamente verossímeis, e acusar – embora por linhas tortas – o presidente de estar preparando um autogolpe para se tornar ditador. A repercussão era grande. Mas não inviabilizava o prosseguimento do governo.
Daí a surpresa chocante com aquela carta de renúncia, tosca e inconvincente. Era inspirada na carta-testamento de Getúlio Vargas. Mas, fora do mesmo contexto, soava como farsa, na repetição forçada. Seu eixo era a referência a “forças ocultas” que teriam inviabilizado o presidente de exercer o seu mandato. Ocultas era o que as forças opostas a Jânio não eram. Estavam todas escancaradas.
Hoje, a interpretação mais consolidada é de que JQ imaginou o golpe como uma maneira de se livrar dos partidos e do parlamento para poder governar com plenos poderes. A reação popular seria tão devastadora que ninguém mais se atreveria a se colocar em seu caminho. Saindo só, ele voltaria nos braços do povo, que lhe dera, nove meses antes, uma vitória sem paralelo na política nacional. E estaria disposto a fazer de sua manifestação um referendo plebiscitário total. Jânio poderia mandar no Brasil de slack, transmitindo ordens por bilhetinhos, fazendo o que lhe desse na veneta – sem deixar de bebericar seu uísque, em grandes goles, é claro.
O esquema explicativo se amolda como luva aos fatos, mas não esgota a explicação. Nela, há um componente de subjetividade que desafia as teorias sobre determinação em última instância, resultante de condições objetivas e globais. A personalidade encontra aí asas para voar. A manobra janista, por sua marca de extemporaneidade e rapidez, talvez tivesse inviabilizado o efeito pretendido.
Como na proclamação da república, chefiada por um monarquista da véspera, o povo viu de fora os acontecimentos, “bestializado”, na expressão do jornalista Aristides Lobo. Como se não fosse ator no cenário. Tomando a decisão ao alvorecer de um feriado nacional, depois de uma madrugada insone regada a malte escocês, o presidente agiu como num solilóquio, tão magistral que ecoaria pela extensão continental do Brasil como um chamado às armas.
As horas seguintes mostrariam que ele delirava (em delirium tremens?) ao pensar assim. Mas o golpe não estava inviabilizado de todo. Os chefes militares se apresentaram logo diante do presidente e lhe garantiram sustentação armada para que reassumisse o cargo e desse as ordens a serem cumpridas. Patético foi o apelo do principal dos chefes, o marechal Odilo Denys, o mesmo que incitara o marechal Lott a colocar as tropas nas ruas para prevenir o golpe udenista de novembro de 1955, contra a posse do primeiro sucessor do varguismo, o mineiro Juscelino Kubitscheck de Oliveira.
Denys sabia que, dentro da ordem constitucional, a única opção que havia era a posse do vice-presidente João Goulart. Em posição invertida em relação ao episódio de seis anos antes, agora era a vez de o marechal sair da legalidade para convalidar a ilegalidade.
Tudo, menos o herdeiro direto de Getúlio, que os militares conseguiram apear de um cargo chave, o Ministério do Trabalho (onde Jango concedera o maior aumento ao salário mínimo em todos os tempos, de 100%), sem conseguir impedi-lo de permanecer à soleira do poder máximo, como vice-presidente (mas, ao menos, como figura decorativa até então). Era a projeção do fantasma do vizinho peronismo assustando as almas penadas da geopolítica continental.
Talvez ser referendado por chefes militares não estivesse no script montado na mente de Jânio. Talvez aí incidisse alguma reflexão sua sobre as relações de Adolfo Hitler com a Wehrmacht, o exército alemão. Para não ficar nas mãos dos generais (nem da SA, o braço armado de Röhem), Hitler criou a SS, forças armadas paralelas e de elite, apesar de suas enormes fileiras.
Os generais não gostaram, mas todas as tentativas que fizeram para matar Hitler fracassaram. O führer foi o líder e o comandante supremo até se suicidar, no bunker de Berlim, para não cair nas mãos dos russos, como aconteceu a centenas de milhares de homens que ele mandou para o front de guerra (sem nunca visitá-los na devastadora frente oriental).
Por esse ângulo o paralelismo é descabido, mas não o esquema que desencadeou a manobra de Hitler, como a de Jânio. Ele recusou o apoio dos comandantes militares e voou imediatamente para São Paulo. Mas permaneceu ainda por longo tempo na base aérea de Cumbica à espera do ribombar das multidões consagradoras, que não veio.
Assim, a marcha sobre Brasília não teve o mesmo sucesso da romana, que Benito Mussolini comandara quatro décadas antes, na infletida ascendente dos fascismos. O capítulo Jânio Quadros da história brasileira só não se encerrou de todo naquele momento porque Fernando Henrique Cardoso, do alto da presunção tucana, três décadas depois, proporcionou-lhe, involuntariamente, a última aparição (já fantasmagórica) em cena, na prefeitura de São Paulo. O demiurgo da democracia brasileira ainda se valeu dos votos do povo para tirar proveito do erário.
O golpe contra Jango fora armado pelo próprio Jânio. Mandara o vice-presidente à odiada China Comunista como peça de encaixe da trama urdida. A presença do herdeiro de Getúlio entre comunistas, que amanheciam comendo crianças no café, na doutrina da guerra fria, reforçaria a necessidade de rebater a renúncia com a concessão de plenos poderes ao presidente-estadista. Ele tinha rompantes alucinados, como ao conceder a maior honraria brasileira ao líder cubano Che Guevara, dias antes, mas possuía a autoridade e a legitimidade sacramentadas junto ao povo. Dessas qualidades a conspirativa UDN (castrense ou civil, além de anfíbia) era carente.
Sacramentada a renúncia de Jânio, começou uma nova manobra golpista, para impedir a sucessão constitucional com a posse do vice-presidente eleito pelo povo. O amoldável deputado federal paulista Ranieri Mazzilli assumiu o cargo, por ser o segundo na ordem de substituição, mas a interinidade tinha as marcas da perenidade. Era para ficar ali, como o boneco a obedecer a ordens dos ventríloquos. Se ousasse retornar ao Brasil, Jango seria preso.
O esquema, bem tradicional, começou a ruir quando o governador do Rio Grande do Sul, o engenheiro Leonel de Moura Brizola, de currículo tão luzidio quanto o de Jânio nos limites dos seus pagos, três anos mais novo que o cunhado vice-presidente, disse não e começou de imediato a dar conseqüências a esse brado. O palácio Piratini se transformou no quartel-general da reação ao golpe.
Para garantir a ressonância, Brizola requisitou uma emissora de rádio, a Guaíba, e a usou como núcleo de propagação da Rede da Legalidade. Em 24 horas, 500 mil civis se apresentaram nos quartéis da Brigada Militar espalhados pelo Estado para pegar armas em defesa da posse de Jango.
O problema era o III Exército, o maior e mais bem armado dos quatro exércitos brasileiros, continuamente adestrado para fazer frente ao maior inimigo em potencial do Brasil (ao menos até a era do Mercosul), a Argentina.
Todos sabiam disso, golpistas e legalistas. Por ordem do marechal Denys, presidente de fato do país naquele momento, o general Orlando Geisel (irmão mais velho do futuro presidente, general Ernesto Geisel) deu ordem ao general José Machado Lopes, comandante do III Exército, para bombardear imediatamente o palácio do governo do Estado, no qual se encontravam em vigília permanente pelo menos 600 pessoas, dentre elas Brizola.
Esse episódio se tornou um detalhe na crônica dos acontecimentos, mas me veio à memória quando, 12 anos depois, os caças a jato da Força Aérea chilena bombardearam o palácio La Moneda, uma histórica construção levantada pelo colonialismo espanhol no centro da formosa cidade de Santiago (acumulando 20% da população do Chile). As seguidas explosões das bombas lançadas desencadeavam labaredas de fogo e o despedaçamento do edifício, dentro do qual havia muito menos gente, depois da evacuação que Salvador Allende ordenara, antes de, vendo a derrota se aproximar na forma de agressão sem limites, se suicidar.
O general, que dias antes recusara aderir ao movimento de Brizola, não cumpriu a ordem infame. Pode ter sido por horror à carnificina que se seguiria. É muito provável que o ataque desencadeasse uma verdadeira guerra civil, que começaria no Rio Grande do Sul e logo subiria pelo território nacional (já que o general Oromar Osório, comandante da forte divisão de cavalaria de Santiago do Boqueirão, na fronteira com a Argentina, já tomara o rumo do Paraná, em defesa da legalidade constitucional).
Nesse momento, diante da iminência de um confronto como nunca houvera no Brasil, os golpistas perceberam que, desta vez, nem a movimentação de tanques, carros de combate e homens armados seria suficiente para dar-lhes a vitória, como nos episódios anteriores. Agora haveria combate entre forças opostas. Teriam que combater o maior dos exércitos, com 80 mil homens bem adestrados, reforçado pelos 10 mil do efetivo da lendária Brigada gaúcha, e civis com passado belicoso.
De alguma forma (e da forma errada, pela mudança da regra constitucional vigente, para a adoção do parlamentarismo), mais um grande fazendeiro dos pampas gaúchos teria que ser admitido no poder supremo. Os golpistas estavam vencidos. Mas era apenas uma batalha. A guerra continuaria até 1964, quando se estabeleceu o mais prolongado e profundo dos golpes militares da história brasileira. Mas essa é outra história, para voltar a ser contada no próximo cinqüentenário, certamente sem a omissão do que agora relembro.
Não foi apenas um capítulo traumático da história brasileira: foi marcante também na minha vida. Getúlio Vargas entrou muito cedo nela. Ele passou por Santarém, onde minha família morava, em 1950. Eu mal completara meu primeiro ano de nascimento. O ditador rumara para o exílio quando o Estado Novo chegou ao fim, em 1945. Elegeu-se senador por seis Estados (a legislação admitia a disputa simultânea em mais de um Estado), mas praticamente não exerceu o mandato. Retornou plenamente adaptado à vida democrática, de longa duração para os padrões nacionais (19 anos), para disputar a mesma presidência que ocupara por ato de força.
Quem o saudou na passagem por Santarém foi meu pai, Elias Pinto, que tinha então 25 anos e era secretário da prefeitura. Getúlio gostou do discurso e designou meu pai como seu representante para organizar o PTB local e comandar a campanha presidencial ali. Eleito, Getúlio atendeu a maior reivindicação do município: a instalação de uma indústria para beneficiar a juta, principal produto regional, que era exportada em bruto. O presidente também prometeu que, numa viagem de trabalho pela Amazônia, pararia em Santarém para um ato público e para batizar o filho mais novo do seu correligionário, o Luiz, que ilustra este jornal (em todos os sentidos).
No dia 24 de agosto de 1954 a notícia do suicídio de Getúlio baixou como um raio sobre a nossa casa. A choradeira era grande. As janelas da frente foram escancaradas para deixarem passar marchas fúnebres, hinos e discursos. As pessoas não paravam de chegar. Apresentavam condolências ao meu pai, como se ele fosse da família Vargas (o que, de fato, era). Papai chorava e discursava.
Quando voltou do enterro em São Borja, terra dos Vargas, ele trouxe um disco compacto (de vinil). Pedro Luís lia a carta-testamento como se fosse o próprio Getúlio. Menino às vésperas dos cinco anos, o que primeiro me atraiu foi aquele sotaque carregado, com os “ll” prolongados pelo céu da boca, estalando como chicote. Depois, a sonoridade e a força daquelas palavras.
Finda a primeira audição coletiva, que se prolongou por horas e provocou soluços descompassados, coloquei o disquinho na vitrola e fiquei ouvindo sem parar. Logo tinha decorado a empolgante oração, para maravilha do meu pai. Passei a acompanhá-lo em reuniões, só para ele mostrar ao auditório que aquele menino era cabeçudo porque era inteligente.
Minhas primeiras interpretações do testamento de Getúlio foram um sucesso. Tão estrondoso que precisei ser contido à força de cala-boca, um confeito de açúcar colorido e redondo enorme, que levava minutos para se dissolver na boca aberta – e, portanto, imobilizada para a arte oratória.
Na campanha eleitoral de 1960 andei terçando armas pelas ruas de Belém, nossa residência quando papai veio assumir seu cargo de deputado estadual (o 6º mais votado no Estado, inaugurando sua conturbada carreira política). Eu distribuía as espadas do marechal Lott, candidato do PTB (e do PSD, adversários na política local), contra a vassoura moralista de Jânio.
Na crise de 1961 nossa casa fervilhava de gente atrás de notícias e orientações. Eu não descolava do Transglobe Philco, o potente aparelho de rádio que girava pelo mundo captando sons audíveis numa era de cacofonia no éter. Quando Jango chegou ao poder, papai foi junto. E eu atrás, mas não incondicionalmente. Via as cicatrizes e seqüelas daquele populismo, às vezes viciado, nas concorridas reuniões na nossa casa. Mas eu era nacionalista, seguindo como catecismo o que saía em publicações como O Semanário e em livros-panfletos, como os de Gondin da Fonseca.
Um comentário:
Excelente texto.
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