Do Blog Vale que Vale, de Lúcio Flávio Pinto
Certo dia, o mais famoso filho de Itabira chegou à sacada da sua casa e não viu mais a serra em frente. Serra que fora do seu pai, do seu avô, “de todos os Andrades, que passaram/ e passarão, a serra que não passa”.
Serra essa que era “coisa de índios”, tomada pelos brancos “para enfeitar e presidir a vida/ neste vale soturno onde a riqueza/ maior é a sua vista a contemplá-la”.
Deveria ser uma vista eterna. O pico do Cauê, todo de ferro, do melhor minério do planeta, era capaz de soprar “eternidade na fluência”.
Mas eis que, em dada manhã, o poeta Carlos Drummond de Andrade olha e não vê mais a serra dos índios e dos muitos Andrades. A forma eterna de ser em ferro fora desmontada, “britada em bilhões de lascas,/ deslizando em correia transportadora/ entupindo 150 vagões,/ no trem-monstro de 5 locomotivas/ – trem maior do mundo, tomem nota”.
Indignado, o poeta ordena em versos: “foge minha serra vai,/ deixando no meu corpo a paisagem/ mísero pó de ferro, e este não passa”.
Se tivesse nascido em Parauapebas, no Pará, como reagiria aquele que muitos consideram não só o maior poeta de Minas Gerais, mas do Brasil? Sua serra acabou como “um retrato na parede, e como dói”. Deixou como herança um hábito, bem itabirano, “de sofrer que tanto me diverte”, reconforta-se o vate mineiro.
Foi a partir de 1942 que Itabira começou a ser explorada por aquela que se tornaria a maior mineradora de ferro do mundo, a segunda maior das mineradoras em geral, a maior empresa privada do continente latino-americano e a maior exportadora do Brasil: a Companhia Vale do Rio Doce.
Vale que ajudou a devastar a bacia do rio Doce, que lhe emprestou o nome e serviu de maravilhosa paisagem para suas estripulias geológicas de cavar fundas jazidas para inverter serras, que viraram buracos, e depois se reduziram a retratos doloridos na parede de poetas.
A CVRD já tinha muita história ao ser vendida, em 15 de maio de 1997. Mas tudo que fez em 55 anos como estatal, que saiu do papel com a missão de fornecer o minério vital para o esforço das nações Aliadas na Segunda Guerra Mundial contra as potências do Eixo (assim como a Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, Rio de Janeiro), foi multiplicado nos 15 anos seguintes como empresa privada.
O que a Vale já fez em Carajás, 550 quilômetros a sudeste de Belém do Pará, não encontra paralelo na crônica do desmonte de vários dos picos semelhantes ao de Cauê, espalhados por uma das regiões mais belas e de maior densidade histórica e cultural do Brasil, nas antigas Minas Gerais.
O trem da estrada de Vitória (no Espírito Santo) a Minas, de 150 vagões, que era o maior do mundo no poema de Drummond, não chega perto do trem de Carajás, hoje o maior de todos, “como nunca antes”, à Lula.
O trem que corre pelos 892 quilômetros da ferrovia de Carajás ao porto da Ponta da Madeira, na ilha estuarina de São Luiz do Maranhão, inaugurada em fevereiro de 1984, tem mais do que o dobro de vagões. São 330, que se estendem por quatro quilômetros de extensão.
A composição faz nove viagens por dia. Leva o equivalente a 30 milhões de dólares de um minério ainda mais puro do que o de Itabira, o mais rico da crosta terrestre.
Em 2010 o trem parou por vários dias. Uma chuva torrencial inundou toda a parte mais baixa do Maranhão. Os agrupamentos humanos espalhados por uma das regiões mais pobres do Brasil, reduto eleitoral do clã Sarney, ficaram isolados e pessoas morriam ou passavam fome.
Enquanto esse drama social acontecia, a tecnologia, o dinheiro, a inventividade e 500 trabalhadores, recrutados para o serviço de levantar diques dos dois lados dos trilhos, se combinaram, sob o comando dos engenheiros da Vale, para fazer a composição cruzar as águas.
O trem parecia um animal anfíbio de aço. Nem a enchente o parou. Talvez sobreviva até a um novo dilúvio Noelino. O homem é um capeta no sertão, diria o também mineiro Guimarães Rosa, que de sertão entendia.
No mês passado houve outra paralisação, dessa vez porque uma ponte em obra desabou. Só três pessoas ficaram feridas, no registro estatístico. Mas 300 mil toneladas de minério deixaram de ser embarcados nos gigantescos navios (um só engole toda essa carga em seu estômago de aço).
Os graneleiros atravessam os mares para levar o ferro para o seu maior consumidor, a China, que fica com 60% da produção de Carajás. Outros 20% vão para o Japão.
No ano passado a produção foi recorde: 110 milhões de toneladas, um terço de todo minério que a Vale produziu, com um diferencial: é o filé-mignon do ferro.
As jazidas de Carajás deviam durar 400 anos, mas talvez não cheguem a 100. A produção vai dobrar até 2015. O Pará será o maior exportador de ferro do mundo. Produzirá tanto quanto os Estados Unidos no pós-guerra.
Ótimo para a Vale (que teve lucro de 30 bilhões de dólares no ano passado, nove vezes o valor da privatização), para a China, para os demais compradores. E para os paraenses?
Os paraenses importam pouco. Seu Estado é o 16º em desenvolvimento (IDH) e 21º em PIB per capita (a riqueza dividida pela população) O que importa é o ritmo do trabalho para desmontar as serras, transformá-las em lascas e colocá-los no trem, daí embarcando em navios e sendo levadas para bem longe. O resto é detalhe.
Como o lamentável acidente que aconteceu em Carajás no dia 31 de março. Uma árvore desabou sobre um ônibus que seguia pela Estrada do Manganês, numa das áreas de mineração da empresa, matando três e ferindo nove dos seus ocupantes.
À parte a tragédia, acontecendo agora de forma ainda não registrada, um detalhe me chamou a atenção: continua a se chamar Yutaka Takeda o hospital do núcleo urbano de Carajás, em Parauapebas, o 2º município que mais exporta no Brasil (e uma tragédia em indicadores sociais).
Quando soube da homenagem prestada pela então estatal, no início dos anos 1990, protestei de público. A denominação original do hospital era Nossa Senhora de Nazaré. Nada mais natural e merecedor de aplausos.
Afinal, trata-se da padroeira dos paraenses, que lhe consagram, em Belém, a maior romaria religiosa do mundo. Procissão que conta com mais de um milhão de pessoas.
Como a CVRD queria homenagear o big boss da Mitsui, a maior compradora de minério de ferro de Carajás na época, que encontrasse outra forma de bajulação. Inadmissível era fazer a troca da santa pelo executivo, da cultura nativa pela lembrança exótica – e utilitária.
Um alto executivo da companhia me garantiu que o hospital voltaria ao seu nome inicial; e me desliguei do assunto.
O grave acidente do dia 31 me mostrou que fui enganado. Eu e os paraenses que acreditavam que a Vale dava tanta atenção aos seus clientes quanto aos donos da fantástica província mineral, por ela explorada sob concessão do governo federal.
Se o que importa é quem comparece à boca do caixa, então que se substitua o nome do executivo japonês pela do capitalista chinês. A China compra, hoje, muito mais minério de ferro do que o Japão de Yutaka Takeda. Por muito mais do que 30 dinheiros.
Para essa maravilha o poeta Carlos Drummond de Andrade não dedicaria os seus versos.
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