Por Lúcio Flávio Pinto
Fui testemunha das três maiores enchentes do rio Amazonas registradas
antes da atual, já considerada superior a todas as anteriores: em 1953,
1976 e 2009.
Ainda não fui ver com meus próprios olhos a retumbante cheia de 2012.
Mas vi uma cena que nunca presenciara nos muitos acompanhamentos que
fiz desse que é o maior fenômeno das águas doces do planeta: o turista
da enchente.
Um cinegrafista da TV Globo, que, finalmente, descobriu a pauta
(depois do Marajó e do Pará, por razões mercadológicas), captou a cena:
turistas num bote de alumínio indo ao local de medição da evolução das
águas no porto de Manaus.
Com seus coletes salva-vidas, em trajes de campanha e liderados por
um guia, eles batiam fotos da centenária régua instalada no local,
registravam nos seus celulares o cenário aquático e posavam eles
próprios para fotografias, empolgados e emocionados.
Pareciam participar de um safári. Não orientado para ver — e abater —
grandes animais, como na África e na Ásia. A nova modalidade é para
contemplar e sentir o colosso que é o maior rio do mundo, tufado como
nunca antes. Deve ter sido o grande assunto da excursão. Vai se estender
por muito tempo, provavelmente para sempre, em suas vidas.
Lembro-me, muitos anos atrás, quando Manaus começava a trilhar pelo
turismo ecológico, de um passeio de barco por igarapés nos arredores da
cidade. O momento culminante da jornada era numa ilha, dentro de um
labirinto, onde um grupo de índios executou uma dança ritual para
embasbacados visitantes, a maioria vinda do exterior.
À noite, firmei a vista e me certifiquei: um dos garçons, que atendia
no recém-inaugurado Hotel Tropical, dançara poucas horas antes, de
cocar e tanga. A caráter, era um perigoso guerreiro diante de bwanas agradecidos pela oportunidade de comprovar que Jean-Jacques Rousseau tinha razão quanto ao bom selvagem.
O exótico pode ser o estranho, a desviar a compreensão do que se vê.
Viu-se o fato sem entendê-lo. É muito comum em qualquer lugar do mundo
percorrido por turistas apressados — e agora, com sua tecnologia
instantânea, sempre mais superficiais.
Ainda assim, é positivo o surgimento desse novo tipo de turismo, que
leva as pessoas a ver a natureza em plena atividade. O integrante de
tais comitivas pode voltar ao ponto de origem carregado de emoções,
sensações e crenças, convencido de que valeu a pena pagar (e caro) por
essa oportunidade única. Pode até mesmo se tornar um apaixonado pela
Amazônia e seu divulgador por onde mais estiver.
Contudo, é essencial não esquecer que as águas desempenham um ciclo
na Amazônia, um ciclo esmagador, pelo volume movimentado durante esse
circuito de encher e vazar, o mais importante em uma região do tamanho
da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos.
O turista, cheio de interjeições e exclamações, passa rápido. Quanto
mais deles aparecerem, melhor. É um tipo de visitante mais útil do que o
comprador de bugigangas da Zona Franca. Se apoiado e bem orientado,
verá a obra da natureza em pleno processo, ao invés de se restringir a
ter contato com a obra humana, frequentemente antípoda do meio ambiente.
Quem interessa, porém, é o nativo, aquele que fica. Mesmo que o rio
inche como nunca, obrigando-o a elevar o piso de suas casas até o
telhado, ou, quando a acomodação se torna impossível, a procurar outro
abrigo, deixando para trás todo seu patrimônio e levando consigo muitas
agruras, o habitante das margens dos rios tem outro tipo de reação
diante dessa realidade.
Sempre que conversei com o varzeiro sobre a grande cheia, sua
primeira reação era contrapor, à descrição da destruição provocada pelas
águas, uma frase ao mesmo tempo calma e forte: haverá fartura no ano
que vem.
Para o nativo, a água não é um acidente, um fenômeno em si. É
elemento de uma cadeia, ser vivo, dinâmico, criador. Se sobe demais, a
água inunda a faixa de terras mais próxima, onde pode estar uma fazenda,
um povoado ou cidades grandes, como Manaus e Santarém. Esta é a sua
face ruim, às vezes um flagelo.
Avançando sobre áreas nunca alcançadas até então, a cheia irá
fertilizá-las — o que raramente acontece ou mesmo pela primeira vez,
como agora. O Amazonas carrega no seu curso de autêntico mar sedimentos
ricos em nutrientes, arrastados desde os Andes. Atingindo altura muito
superior ao do seu nível normal, mesmo nas cheias de todo ano,
depositará esses elementos sobre o chão pobre da região. Depois que ele
desce, é ir lá e plantar. A messe será grande.
Claro: não é um ciclo apenas pacífico, bucólico, poético. Mas o
homem, muito mais hoje do que em qualquer época, pode prever, controlar
ou minorar a face destruidora do rio. Tem ao seu dispor satélites de
informação, meios de locomoção, tecnologia de construção, um arsenal de
recursos que existe, mas não está ao alcance do nativo, ainda entregue à
própria sorte e aos próprios meios, ao que ainda é passado nos
prospectos contemporâneos.
A faixa de terras banhada pelo rio fora do seu leito alcança 150 mil
quilômetros quadrados. Não parece muito. O falecido empresário Cecílio
do Rego Almeida dizia-se dono de quase metade dessa área no vale de um
dos afluentes do Amazonas, o Xingu. Seriam, se a grilagem tivesse dado
certo, 70 mil quilômetros quadrados para um homem só. Algo que violava
as leis dos homens e da natureza.
Com apenas o dobro dessa pretensão territorial, as várzeas, tendo seu
solo fertilizado todos os anos pelo grande semeador natural, o maior de
todos, o Amazonas, seria a terra mais rica do mundo. Capaz de produzir
alimentos para todos os brasileiros e, uma vez que os saciasse,
excedente exportável para muitos outros povos.
Não há um único empreendimento privado ou projeto público destinado a
essa finalidade. É um paradoxo incrível, absurdo. Mas não o bastante
para acabar com toda esperança, como advertia Dante à entrada do inferno
da Divina Comédia (deixai toda esperança, vós que entrais).
Já há o turista da enchente na Amazônia. Hélas!
PS — O programa de computador não inclui essa
expressão. O Aurélio não a define satisfatoriamente. A lexicografia
assemelha-se à Amazônia: uma região desconhecida ou mal entendida. Afe!
Nenhum comentário:
Postar um comentário