Lúcio Flávio Pinto
Chico
Pinheiro anunciava no Bom Dia, Brasil,
o programa matinal da TV Globo, a notícia sobre a instalação da Comissão da
Verdade em Brasília, ocorrida no dia anterior, no movimentado maio deste ano.
Disse que seriam apurados os atos de violência política durante o regime
militar. De imediato fez a correção: durante a ditadura. E seguiu em frente.
Quantas
vezes a definição foi usada em qualquer dos veículos das Organizações Roberto
Marinho entre a edição do AI-5, no plúmbeo dia 13 de dezembro de 1968, e a
posse do primeiro presidente civil, José Sarney, mais de 16 anos depois? Talvez
nem uma só. Nenhumazinha. Necas de pitibiriba.
A
palavra ditadura estava vetada pelo governo. Mesmo que ele não reprimisse o seu
uso, referir-se a ditadura soava como pecado, ato ilegal e iníquo passível da
mais drástica punição. Mesmo sussurrando a expressão maldita, dizendo-a ao
ouvido do interlocutor, sentia-se o perigo, temia-se pelas consequências. O
regime era de terror. O Grande Irmão era quase onisciente e onipresente.
A
tradução de Big Brother, expressão extraída da literatura antitirania de George
Orwell, ainda não era sacanagem, exibicionismo, narcisismo e mediocridade.
Conversão, aliás, que se deve à emissora de televisão do Grande Irmão Roberto
Marinho.
Se
antes era sinônimo de delito, ilícito, pecado e blasfêmia chamar o governo de
ditadura, hoje a definição, pela repetição ad
nauseam, irrefletida e inconsequente, perdeu a sua carga expressiva, o seu
significado heurístico. De elemento escatológico, passou a ser componente
aleatório, mero complemento de linguagem. Além de soar falso em muitas das
bocas que a pronunciam hoje.
A
Globo foi parceira da ditadura até a undécima hora. Gozou de todos os
benefícios do regime. Só se dissociou dele no derradeiro momento do seu
naufrágio. Mas com tal senso afinado de oportunidade que foi acolhida com
saudações e comemorações na nova nau, que passaria a singrar os mares do poder
no Brasil. A Globo era um dos salvados do incêndio, no rescaldo de proteção que
beneficiaria também José Sarney, Antônio Carlos Magalhães e outros personagens
desses tempos de gatos pardos vistos como pretos.
Isso
não quer dizer que o companheiro Roberto Marinho fosse um canalha completo. A
tipologia cabe apenas no personagem de Nelson Rodrigues, o imaginário e
arquetípico Palhares. A trajetória de um homem que assumiu ainda jovem o
comando de um novo jornal, que o pai apenas fundara, morrendo logo em seguida,
até montar um dos maiores impérios de comunicação do mundo, não é para ser
descartada. Nem para ficar nas mãos de um áulico como Pedro Bial, biógrafo
medíocre diante da riqueza do tema.
A
história de Marinho é fascinante, assim como a de muitos dos capitães da
“imprensa sadia”, conforme a expressão irônica que os seus críticos usavam, até
os anos 1960 (o fim dessa utilização chegou com a ascensão do regime de exceção
– e não foi exatamente por acaso).
Lia
empolgado tudo que Gondin da Fonseca escrevia sobre os donos de jornais e sua
fauna acompanhante. Gondin foi um dos maiores panfletários da história do
jornalismo brasileiro, excluído da memória coletiva dos nossos dias. Mas não
fiquei nele nem incorporei a maioria dos seus conceitos. Li tudo que me caiu às
mãos sobre a nossa imprensa. Não é muito. Pelo contrário: é quase nada.
Há
excelentes trabalhos, como o que Fernando Moraes empreendeu sobre Assis
Chateaubriand. Li e reli a biografia (Chatô, o rei do Brasil), apesar de volumosa. E
mesmo tendo suas centenas de páginas, deixou questões importantes de lado e não
respondeu a perguntas que emergem do trabalho. Deviam ter induzido novos
livros. Mas o livro de Fernando parece ter saciado a curiosidade nacional.
Contar
tudo, mesmo o imoral, é uma necessidade que não impede a compreensão dos
personagens e a avaliação do papel que desempenharam. O Brasil constitui uma
história da qual só agora os brasileiros se apercebem.
Felizmente
se multiplicam os livros sobre temas do passado e de hoje. Inquieta, porém, que
essa prodigalidade de resultados se estabeleça sobre uma base mesquinha de
dados. Há mais trabalhos de interpretação e reinterpretação, feitos em cima de
outros livros, do que de verdadeira revelação.
Não
se há de esperar sempre novidades e muitas vezes elas deixaram de existir.
Mesmo assim é escassa a base documental de tantos livros que inundam a
vasqueira rede de livrarias (em número provavelmente inferior ao de editoras).
Não
é que os escritores sejam preguiçosos ou negligentes (mas muitos o são): é que
os arquivos não se abrem; a pesquisa é dificultada; o governo, principal fonte
de informação primária, senta sobre suas jazidas documentais.
A
comissão da verdade referida por Chico Pinheiro na sua hesitante locução é absolutamente
necessária. Ela poderá abrir arquivos e trazer informações com as quais se
haverá de escrever uma história contemporânea mais verdadeira e rica. Mais do
que isso: ajudará pessoas vivas a saberem onde foram parar no além – e de que
maneira foram parar – seus parentes e amigos desaparecidos.
Um
país civilizado se civiliza por conhecer sua história, preparado para encarar
os fatos, quais forem, mesmo – e, sobretudo – os desagradáveis, justamente os
essenciais para purgar erros e burilar lições. Também se aprimora pelo gesto
nobre e profundamente humano de atender os pedidos e cobranças dos cidadãos
atingidos pelos braços longos e pesados do poder estatal.
O
empresário e político Rubens Paiva é o mais célebre e trágico desaparecido,
fato sem explicação (e cova sem sepultura) há quatro longas décadas. Tudo
indica que ele foi executado, da forma mais torpe, pelo erro e incompetência
dos seus algozes. Mesmo que eles já não possam ser punidos e a punição passe a
ser fato secundário, os parentes e amigos de Rubens Paiva tem todo direito de
saber como foi o seu fim.
O
escritor e jornalista Jason Tércio tentou fornecer essa história completa em
livro recente, Segredo de Estado. A
falta de dados suficientes para a demonstração o obrigaram a entremear a descrição
dos acontecimentos reais com doses de imaginação por ser impossível escrever um
verdadeiro livro de jornalismo ou de história.
Esse
livro precisa ser escrito. Muitos desses livros precisam ser escritos. Do
contrário o Brasil não enterrará todos os seus mortos, as sombras permearão a
claridade, o projeto de civilização se frustrará e Chico Pinheiro titubeará
entre o regime militar e a ditadura.
Numa
democracia, é normal que se chame a ditadura de ditadura. Num país que pretende
se consolidar sob democracia, ditaduras não podem vicejar. Têm que ser
eliminadas de vez do terreno saudável para que ele fique cada vez mais forte,
tornando impossível qualquer tipo de ditadura.
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