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Em 2004 a Companhia Vale do Rio Doce anunciou o investimento de 1,2 bilhão de
dólares (quase dois bilhões de reais daépoca) na mina de níquel do Vermelho,
em Carajás, no sul do Pará. Mas só depois de dois anos de tramitação do seu
projeto pela burocracia oficial, conseguiu obter licença prévia para começar a
implantar a lavra.
O diretor de planejamento e gestão da companhia, Gabriel Stoliar, reclamou da
demora, que poderia comprometer o cronograma da Vale. A empresa
estava interessada em colocar em operação o níquel do Vermelho antes do
vizinho projeto do Onça Puma, também seu. Com mais o Onça, que
teria investimento equivalente, ou US$ 1,1 bilhão, a
Vale colocaria o Brasil entre os cinco maiores produtores mundiais de
níquel.
As críticas, feitas durante a apresentação dos resultados da CVRD no primeiro
semestre de 2006, obrigaram o representante da empresa em Belém, Eugenio
Victorasso, a procurar atenuar a repercussão negativa das declarações de
Stoliar junto ao governo do Estado. As relações entre as duas partes, que nunca
foram exatamente risonhas e francas, ameaçavam azedar ainda mais se Almir
Gabriel fosse eleito sucessor do também tucano Simão Jatene.
Para sorte da companhia, isso não aconteceu: a vencedora foi a ex-senadora Ana
Júlia Carepa, do PT, que interrompeu o ciclo tucano por apenas quatro anos, já
que em 2010 Jatene a derrotou e assim voltou ao cargo (enquanto Almir mudava de
partido). O ex-quase-futuro-de-novo-governador foi duríssimo nas críticas à
maior empresa em atuação no Pará (no qual fatura mais do que o próprio governo)
a partir do momento em que as prometidas compensações pelo seu silêncio
conivente com a privatização não se materializaram.
O representante da Vale, colocando panos quentes no bate-boca, explicou que a
demora no processo de licenciamento não se devia a qualquer imperícia ou falta
de apoio da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado, mas às
exigências da própria legislação. Ela impõe um rito mais lento devido a certas
exigências, que precisariam ser aprimoradas. A Sectam – tratou de ressaltar –
era parceira da Vale, desempenhando seu papel de forma “correta e competente”.
Não faltavam motivos para a companhia reclamar da demora. O mercado do níquel,
usado na produção de aço inoxidável, estava então muito aquecido pela demanda
da China. Era preciso aproveitar essa conjuntura internacional para aumentar a
rentabilidade do empreendimento. Mas se a burocracia pública entravava o
andamento regular e desejável do licenciamento ambiental, com exigências às
vezes marcadas pelo preciosismo, parcela ponderável de culpa cabia à própria
mineradora.
Os representantes do Ministério Público que atuaram no licenciamento no
Conselho Estadual do Meio Ambiente, Raimundo Moraes e Bezaziel Alvarenga,
observaram, em seu parecer sobre o EIA-Rima (estudo e relatório de impacto
ambiental) do níquel do Vermelho, “as profundas deficiências desses estudos
apresentados, especialmente nos aspectos relativos aos riscos sobre a saúde
humana e sobre a higidez do meio ambiente natural e social”.
Um projeto de mais de um bilhão de dólares não podia conter deficiências desse
nível na avaliação do seu impacto ambiental na região onde iria funcionar. Se
realmente procedentes as restrições opostas pelos dois promotores, algumas das
quais até rudimentares, a Vale agia com negligência ao contratar consultores
para elaborar esses estudos de impacto ecológico e humano.
A empresa precisava responder rapidamente – e convincentemente – a essas
críticas para merecer consideração. Por causa de tais falhas, os promotores
desaconselharam o licenciamento do projeto, alegando que o EIA-Rima não
demonstrou a viabilidade ambiental para a operação da mina de níquel do
Vermelho.
Algumas das deficiências apontadas podiam ser atribuídas mais à inércia do
poder público do que à imperícia da empresa privada, chamada a suprir uma
missão de governo ignorada ou descurada. Em certa medida os representantes do
Ministério Público queriam que a companhia chamasse para si responsabilidades
da administração pública.
Tal transferência de responsabilidades não tem previsão em qualquer norma
legal, mas pode ser enquadrado dentre as responsabilidades sociais de uma
empresa privada, sobretudo em área pioneira, como a de Canaã dos Carajás,
município no qual se localiza a jazida de níquel.
Várias lacunas indicadas no parecer do MP não diziam respeito diretamente ao
impacto ecológico, mas iriam influir sobre a vida humana, a ser considerada
quando os efeitos do projeto forem desencadeados. Novos estudos eram
necessários para fundamentar políticas públicas de saúde, educação, moradia,
absorção de imigração ou segurança pública.
Outros dados solicitados, porém, diziam respeito ao processo produtivo. Os
promotores afirmaram em seu parecer, por exemplo, que “são enormes os riscos
dos efluentes industriais gasosos, líquidos e sólidos a serem gerados, a
exemplo dos impactos: da emissão permanente de névoa ácida e outros gases
decorrentes da fábrica de ácido sulfúrico, da barragem e da bacia de rejeitos
sobre o solo e as águas superficiais e subterrâneas e da torta sólida
resultante do processo industrial, seu depósito e tratamento final”.
A cobrança com rigor da empresa pode se tornar um procedimento exemplar com
efeito demonstrativo para o futuro, inibindo licenciamentos ambientais feitos
apenas para cumprir uma formalidade, como acontece com certa frequência.
A Vale podia alegar em sua defesa que exigências como as que lhe foram feitas
em relação à mina do Vermelho não foram aplicadas ao outro projeto de níquel de
Carajás, o do Onça Puma, licenciado anteriormente pela canadense Canico, antes
de sua aquisição pela CVRD, em 2005. Seria verdade, mas não esconderia outro
fato: o lento avanço dos procedimentos em matéria de controle ambiental.
Visões isoladas e particulares de cada jazimento da província mineral de
Carajás já deviam ter sido substituídas por uma visão de conjunto sobre o
conjunto mineral, enquanto há minério, cuja exploração precisa ser
regulamentada satisfatoriamente.
Dez minas de ferro, manganês, cobre e níquel se distribuem por quatro
municípios do sul do Pará e as autoridades agem como se cada um deles fosse um
país, com fronteiras rígidas e soberanias excludentes. Não há um planejamento
integrador, capaz de tirar o máximo benefício em conjunto desses empreendimentos
econômicos. De dar-lhes sinergia, como diz o jargão técnico.
Só a própria Vale tem uma visão global desses projetos. Com o pleno
funcionamento das minas, os valores envolvidos estão de multiplicando
rapidamente. Quanto dos grandes recursos gerados ficará na própria região,
beneficiando-a de forma duradoura e não apenas – e residualmente – durante a
safra dos minérios, encurtada pela escala enorme da produção?
Pouco, se depender da iniciativa própria da empresa. Menos do que o possível,
se a tarefa ficar entregue ao governo, despreparado para cumprir sua missão
numa região desarticulada e desestruturada pelo impacto desses “grandes
projetos”, como eles são (mal) conhecidos. A intervenção dos dois promotores no
processo de licenciamento pode ter também suas falhas e excessos, mas cumpriu a
função de provocar o debate.
Mais do que um debate acadêmico, está em causa a sorte da natureza e das
pessoas nesses locais, o que provavelmente levou os dois representantes do
Ministério Público a advertir, em seu parecer, que “o não atendimento sem
justificativa da presente recomendação importará na responsabilização e no
ajuizamento das medidas judiciais civis e criminais, visando a resguardar os
bens ora tutelados, inclusive, com a propositura de apropriada ação civil
pública por improbidade administrativa, consistente no ilícito de retardar ou
deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”.
A advertência dirigia-se tanto à Vale do Rio Doce quanto ao governo do Estado,
chamados a cumprir suas distintas responsabilidades, às vezes ignoradas na
formação de “parcerias”. Em Carajás, elas apresentam resultado desigual,
favorecendo muito mais a empresa privada do que os cidadãos dos quais o poder
público é o representante. No Pará, em tese.
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