terça-feira, 19 de junho de 2012

Início da exploração do níquel em Carajás


 
          Em 2004 a Companhia Vale do Rio Doce anunciou o investimento de 1,2 bilhão de dólares (quase dois bilhões de reais daépoca) na mina de níquel do Vermelho, em Carajás, no sul do Pará. Mas só depois de dois anos de tramitação do seu projeto pela burocracia oficial, conseguiu obter licença prévia para começar a implantar a lavra.
          O diretor de planejamento e gestão da companhia, Gabriel Stoliar, reclamou da demora, que poderia comprometer o cronograma da Vale. A empresa estava interessada em colocar em operação o níquel do Vermelho antes do vizinho projeto do Onça Puma, também seu. Com mais o Onça, que teria investimento equivalente, ou US$ 1,1 bilhão, a Vale colocaria o Brasil entre os cinco maiores produtores mundiais de níquel.
          As críticas, feitas durante a apresentação dos resultados da CVRD no primeiro semestre de 2006, obrigaram o representante da empresa em Belém, Eugenio Victorasso, a procurar atenuar a repercussão negativa das declarações de Stoliar junto ao governo do Estado. As relações entre as duas partes, que nunca foram exatamente risonhas e francas, ameaçavam azedar ainda mais se Almir Gabriel fosse eleito sucessor do também tucano Simão Jatene.
          Para sorte da companhia, isso não aconteceu: a vencedora foi a ex-senadora Ana Júlia Carepa, do PT, que interrompeu o ciclo tucano por apenas quatro anos, já que em 2010 Jatene a derrotou e assim voltou ao cargo (enquanto Almir mudava de partido). O ex-quase-futuro-de-novo-governador foi duríssimo nas críticas à maior empresa em atuação no Pará (no qual fatura mais do que o próprio governo) a partir do momento em que as prometidas compensações pelo seu silêncio conivente com a privatização não se materializaram.
          O representante da Vale, colocando panos quentes no bate-boca, explicou que a demora no processo de licenciamento não se devia a qualquer imperícia ou falta de apoio da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado, mas às exigências da própria legislação. Ela impõe um rito mais lento devido a certas exigências, que precisariam ser aprimoradas. A Sectam – tratou de ressaltar – era parceira da Vale, desempenhando seu papel de forma “correta e competente”.
          Não faltavam motivos para a companhia reclamar da demora. O mercado do níquel, usado na produção de aço inoxidável, estava então muito aquecido pela demanda da China. Era preciso aproveitar essa conjuntura internacional para aumentar a rentabilidade do empreendimento. Mas se a burocracia pública entravava o andamento regular e desejável do licenciamento ambiental, com exigências às vezes marcadas pelo preciosismo, parcela ponderável de culpa cabia à própria mineradora.
          Os representantes do Ministério Público que atuaram no licenciamento no Conselho Estadual do Meio Ambiente, Raimundo Moraes e Bezaziel Alvarenga, observaram, em seu parecer sobre o EIA-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental) do níquel do Vermelho, “as profundas deficiências desses estudos apresentados, especialmente nos aspectos relativos aos riscos sobre a saúde humana e sobre a higidez do meio ambiente natural e social”.
          Um projeto de mais de um bilhão de dólares não podia conter deficiências desse nível na avaliação do seu impacto ambiental na região onde iria funcionar. Se realmente procedentes as restrições opostas pelos dois promotores, algumas das quais até rudimentares, a Vale agia com negligência ao contratar consultores para elaborar esses estudos de impacto ecológico e humano.
          A empresa precisava responder rapidamente – e convincentemente – a essas críticas para merecer consideração. Por causa de tais falhas, os promotores desaconselharam o licenciamento do projeto, alegando que o EIA-Rima não demonstrou a viabilidade ambiental para a operação da mina de níquel do Vermelho.
          Algumas das deficiências apontadas podiam ser atribuídas mais à inércia do poder público do que à imperícia da empresa privada, chamada a suprir uma missão de governo ignorada ou descurada. Em certa medida os representantes do Ministério Público queriam que a companhia chamasse para si responsabilidades da administração pública.
        Tal transferência de responsabilidades não tem previsão em qualquer norma legal, mas pode ser enquadrado dentre as responsabilidades sociais de uma empresa privada, sobretudo em área pioneira, como a de Canaã dos Carajás, município no qual se localiza a jazida de níquel.
          Várias lacunas indicadas no parecer do MP não diziam respeito diretamente ao impacto ecológico, mas iriam influir sobre a vida humana, a ser considerada quando os efeitos do projeto forem desencadeados. Novos estudos eram necessários para fundamentar políticas públicas de saúde, educação, moradia, absorção de imigração ou segurança pública.
          Outros dados solicitados, porém, diziam respeito ao processo produtivo. Os promotores afirmaram em seu parecer, por exemplo, que “são enormes os riscos dos efluentes industriais gasosos, líquidos e sólidos a serem gerados, a exemplo dos impactos: da emissão permanente de névoa ácida e outros gases decorrentes da fábrica de ácido sulfúrico, da barragem e da bacia de rejeitos sobre o solo e as águas superficiais e subterrâneas e da torta sólida resultante do processo industrial, seu depósito e tratamento final”.
          A cobrança com rigor da empresa pode se tornar um procedimento exemplar com efeito demonstrativo para o futuro, inibindo licenciamentos ambientais feitos apenas para cumprir uma formalidade, como acontece com certa frequência.
          A Vale podia alegar em sua defesa que exigências como as que lhe foram feitas em relação à mina do Vermelho não foram aplicadas ao outro projeto de níquel de Carajás, o do Onça Puma, licenciado anteriormente pela canadense Canico, antes de sua aquisição pela CVRD, em 2005. Seria verdade, mas não esconderia outro fato: o lento avanço dos procedimentos em matéria de controle ambiental.
          Visões isoladas e particulares de cada jazimento da província mineral de Carajás já deviam ter sido substituídas por uma visão de conjunto sobre o conjunto mineral, enquanto há minério, cuja exploração precisa ser regulamentada satisfatoriamente.
         Dez minas de ferro, manganês, cobre e níquel se distribuem por quatro municípios do sul do Pará e as autoridades agem como se cada um deles fosse um país, com fronteiras rígidas e soberanias excludentes. Não há um planejamento integrador, capaz de tirar o máximo benefício em conjunto desses empreendimentos econômicos. De dar-lhes sinergia, como diz o jargão técnico.
         Só a própria Vale tem uma visão global desses projetos. Com o pleno funcionamento das minas, os valores envolvidos estão de multiplicando rapidamente. Quanto dos grandes recursos gerados ficará na própria região, beneficiando-a de forma duradoura e não apenas – e residualmente – durante a safra dos minérios, encurtada pela escala enorme da produção?
         Pouco, se depender da iniciativa própria da empresa. Menos do que o possível, se a tarefa ficar entregue ao governo, despreparado para cumprir sua missão numa região desarticulada e desestruturada pelo impacto desses “grandes projetos”, como eles são (mal) conhecidos. A intervenção dos dois promotores no processo de licenciamento pode ter também suas falhas e excessos, mas cumpriu a função de provocar o debate.
         Mais do que um debate acadêmico, está em causa a sorte da natureza e das pessoas nesses locais, o que provavelmente levou os dois representantes do Ministério Público a advertir, em seu parecer, que “o não atendimento sem justificativa da presente recomendação importará na responsabilização e no ajuizamento das medidas judiciais civis e criminais, visando a resguardar os bens ora tutelados, inclusive, com a propositura de apropriada ação civil pública por improbidade administrativa, consistente no ilícito de retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”.
          A advertência dirigia-se tanto à Vale do Rio Doce quanto ao governo do Estado, chamados a cumprir suas distintas responsabilidades, às vezes ignoradas na formação de “parcerias”. Em Carajás, elas apresentam resultado desigual, favorecendo muito mais a empresa privada do que os cidadãos dos quais o poder público é o representante. No Pará, em tese.

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