Lúcio Flávio Pinto
Título origional do artigo: O
monstro do modelo
Viajei
muito pela Amazônia entre o final dos anos 1960 e meados dos 1990. Durante boa
parte desse período, andei sozinho. Além de escrever, também passei a
fotografar. A companhia de um fotógrafo profissional era necessária, mas,
quando atrapalhava, era para valer. Nessa época ia-se pouco ao mato amazônico.
Hoje, apesar de toda propaganda, menos ainda.
Mesmo
indo sozinho a lugares distantes e isolados, nunca me senti tão inseguro que me
visse obrigado a novamente convocar um parceiro de jornadas. Algumas das
excursões podiam ser até temerárias.
Como,
por exemplo, fretar um barco e nele percorrer boa parte do curso do rio
Amazonas em território brasileiro, por longos e aquosos dias, para ver uma das
maiores cheias do século passado, a de 1976.
Ou
ir num monomotor com revestimento de pano a uma aldeia indígena, saindo sem
teto da pista de Ji-Paraná e furando nuvens para chegar à terra dos Suruí. E
voltar para Porto Velho num táxi caindo aos pedaços, que avançava, madrugada adentro,
numa BR-364 em obras, com tratores espalhados pelo caminho. Sem temer assaltos
ou supor que a vida estivesse sob a ameaça de algum agressor oculto.
A
situação mudou. Para pior. Andar pelo sertão amazônico (cada vez mais sertão e
menos amazônico) se tornou uma temeridade. Há mais pistoleiros em ação nas
frentes (pioneiras ou econômicas) da Amazônia, matando por encomenda.
Mas
é difícil identificá-los e localizá-los. Quem encomenda o “serviço” fornece a
arma e toda a logística para a execução. O pistoleiro, depois, volta às suas
atividades regulares, sem qualquer traço de associação ao crime. Até o próximo
contato.
Ele
pode viver num assentamento de sem-terra. Há notícias da presença constante de
pistoleiros entre os lavradores. Os “profissionais do gatilho” também são
agricultores na entressafra do crime. Mas não se expõem mais como antes, em
locais certos e muito conhecidos. Não dão mais bandeira, como se dizia na gíria
(ainda usada?).
Criminosos
de grande periculosidade usam fachadas legais como essa para atuar com mais
desenvoltura, sem correr o risco do estigma, da identificação fácil.
Provavelmente
quadrilhas de bandidos estão se deslocando de suas áreas nativas, no Rio, em
São Paulo e no Nordeste, atraídas pelas possibilidades de ganho melhor e mais
seguro em áreas amazônicas de migração intensa, como hidrelétricas, minerações,
estradas ou portos. Tem know-how para aplicar golpes rentáveis.
Quem
olhar com as lentes apropriadas perceberá dois fenômenos em crescimento
acelerado. Um deles já é mais antigo: a criminalização dos movimentos sociais,
da militância pela causa dos direitos humanos, em especial das minorias, e de
reação à política oficial de ocupação da Amazônia, ainda à base da indução ao
conflito, ao desequilíbrio social.
O
outro é bem mais recente e há pudor em referir-se a ele: é a ação de criminosos
que se aproveitam justamente daqueles reformadores, defensores da dignidade
humana e contestadores, que se entestam com o aparato estatal, ainda viciado
pela promiscuidade com as elites do poder.
Os
militantes sociais costumam ver os problemas da Amazônia por uma ótica
dualista, no velho maniqueísmo do bem e do mal, do bom e do mau, do certo e do
errado.
O
posseiro de um lado, o lado bom; o proprietário de terras do outro, sempre
errado. A empresa, que precisa ser atacada, e o indivíduo, merecedor de todo
apoio. O índio puro e indefeso e o branco devastador.
Esses
papéis existem de fato e definem o espectro de personagens, mas está muito
longe de esgotar a realidade.
A
Amazônia tem crescido mais do que o Brasil. A Zona Franca de Manaus se tornou
um polo industrial de expressão nacional. O Pará, que é o sétimo maior
exportador do país, é o segundo em saldo de divisas graças às suas poderosas
exportações de minérios.
O
ônus desse crescimento acelerado é o agravamento de todos os indicadores
sociais, um desequilíbrio que, literalmente, atrai cada vez mais criminoso.
Amansa-se
a terra com bandidos, não com mocinhos, disse certa vez o economista Delfim
Neto, quando era o todo-poderoso ministro do regime militar (hoje é o
todo-poderoso conselheiro dos dirigentes petistas). A ideia vem dos
bandeirantes do século 17. Hoje, ao invés de amansar a terra, os bandidos a
revolvem. Ajudam a destruir, não permitindo que este seja um monopólio estatal.
Um
indicador dessa nova situação pode ser percebido nas manifestações de protesto
realizadas nas três grandes hidrelétricas em construção na Amazônia. Duas delas
no rio Madeira, em Roraima. E a outra, a de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará.
Comparando-se
como se comportaram os manifestantes nas depredações de acampamentos da usina
de Jirau com as atitudes dos operários no canteiro de obras de Belo Monte, é
possível distinguir um impulso vândalo para criar oportunidades de saque e
destruição de um movimento planejado e realizado para possibilitar corrigir
erros no sistema de trabalho e proporcionar novas conquistas socais.
Essa
distinção dificilmente poderá ser feita a olho nu. Requer lente especial para
penetrar nas aparências e perfurar o dualismo maniqueísta dos sempre bons e dos
sempre ruins. Há uma convulsão e um embaralhamento social na Amazônia, certo
caos, que é o produto natural do modelo concentrador e tendente ao
desequilíbrio, em execução imutável desde 1975.
Foi
quando entrou em vigor o II Plano Nacional de Desenvolvimento (o PND, com seu
capítulo regional, o PDA), que era quinquenal (e que, se não tivesse surgido no
governo do general Geisel, um desavisado talvez pensasse ser bolchevique).
Mas
esse caos poderá ultrapassar as piores previsões e projeções. O monstro em
gestação poderá se tornar ingovernável e, quem sabe, se voltar contra o seu
criador. Um Frankenstein social na selva. Capaz de espantar mister Cecil
Rhodes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário