sábado, 2 de junho de 2012

Pistolagem profissional se sofistica na Amazônia


Lúcio Flávio Pinto
Título origional do artigo: O monstro do modelo

Viajei muito pela Amazônia entre o final dos anos 1960 e meados dos 1990. Durante boa parte desse período, andei sozinho. Além de escrever, também passei a fotografar. A companhia de um fotógrafo profissional era necessária, mas, quando atrapalhava, era para valer. Nessa época ia-se pouco ao mato amazônico. Hoje, apesar de toda propaganda, menos ainda.
Mesmo indo sozinho a lugares distantes e isolados, nunca me senti tão inseguro que me visse obrigado a novamente convocar um parceiro de jornadas. Algumas das excursões podiam ser até temerárias.
Como, por exemplo, fretar um barco e nele percorrer boa parte do curso do rio Amazonas em território brasileiro, por longos e aquosos dias, para ver uma das maiores cheias do século passado, a de 1976.
Ou ir num monomotor com revestimento de pano a uma aldeia indígena, saindo sem teto da pista de Ji-Paraná e furando nuvens para chegar à terra dos Suruí. E voltar para Porto Velho num táxi caindo aos pedaços, que avançava, madrugada adentro, numa BR-364 em obras, com tratores espalhados pelo caminho. Sem temer assaltos ou supor que a vida estivesse sob a ameaça de algum agressor oculto.
A situação mudou. Para pior. Andar pelo sertão amazônico (cada vez mais sertão e menos amazônico) se tornou uma temeridade. Há mais pistoleiros em ação nas frentes (pioneiras ou econômicas) da Amazônia, matando por encomenda.
Mas é difícil identificá-los e localizá-los. Quem encomenda o “serviço” fornece a arma e toda a logística para a execução. O pistoleiro, depois, volta às suas atividades regulares, sem qualquer traço de associação ao crime. Até o próximo contato.
Ele pode viver num assentamento de sem-terra. Há notícias da presença constante de pistoleiros entre os lavradores. Os “profissionais do gatilho” também são agricultores na entressafra do crime. Mas não se expõem mais como antes, em locais certos e muito conhecidos. Não dão mais bandeira, como se dizia na gíria (ainda usada?).
Criminosos de grande periculosidade usam fachadas legais como essa para atuar com mais desenvoltura, sem correr o risco do estigma, da identificação fácil.
Provavelmente quadrilhas de bandidos estão se deslocando de suas áreas nativas, no Rio, em São Paulo e no Nordeste, atraídas pelas possibilidades de ganho melhor e mais seguro em áreas amazônicas de migração intensa, como hidrelétricas, minerações, estradas ou portos. Tem know-how para aplicar golpes rentáveis.
Quem olhar com as lentes apropriadas perceberá dois fenômenos em crescimento acelerado. Um deles já é mais antigo: a criminalização dos movimentos sociais, da militância pela causa dos direitos humanos, em especial das minorias, e de reação à política oficial de ocupação da Amazônia, ainda à base da indução ao conflito, ao desequilíbrio social.
O outro é bem mais recente e há pudor em referir-se a ele: é a ação de criminosos que se aproveitam justamente daqueles reformadores, defensores da dignidade humana e contestadores, que se entestam com o aparato estatal, ainda viciado pela promiscuidade com as elites do poder.
Os militantes sociais costumam ver os problemas da Amazônia por uma ótica dualista, no velho maniqueísmo do bem e do mal, do bom e do mau, do certo e do errado.
O posseiro de um lado, o lado bom; o proprietário de terras do outro, sempre errado. A empresa, que precisa ser atacada, e o indivíduo, merecedor de todo apoio. O índio puro e indefeso e o branco devastador.
Esses papéis existem de fato e definem o espectro de personagens, mas está muito longe de esgotar a realidade.
A Amazônia tem crescido mais do que o Brasil. A Zona Franca de Manaus se tornou um polo industrial de expressão nacional. O Pará, que é o sétimo maior exportador do país, é o segundo em saldo de divisas graças às suas poderosas exportações de minérios.
O ônus desse crescimento acelerado é o agravamento de todos os indicadores sociais, um desequilíbrio que, literalmente, atrai cada vez mais criminoso.
Amansa-se a terra com bandidos, não com mocinhos, disse certa vez o economista Delfim Neto, quando era o todo-poderoso ministro do regime militar (hoje é o todo-poderoso conselheiro dos dirigentes petistas). A ideia vem dos bandeirantes do século 17. Hoje, ao invés de amansar a terra, os bandidos a revolvem. Ajudam a destruir, não permitindo que este seja um monopólio estatal.
Um indicador dessa nova situação pode ser percebido nas manifestações de protesto realizadas nas três grandes hidrelétricas em construção na Amazônia. Duas delas no rio Madeira, em Roraima. E a outra, a de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará.
Comparando-se como se comportaram os manifestantes nas depredações de acampamentos da usina de Jirau com as atitudes dos operários no canteiro de obras de Belo Monte, é possível distinguir um impulso vândalo para criar oportunidades de saque e destruição de um movimento planejado e realizado para possibilitar corrigir erros no sistema de trabalho e proporcionar novas conquistas socais.
Essa distinção dificilmente poderá ser feita a olho nu. Requer lente especial para penetrar nas aparências e perfurar o dualismo maniqueísta dos sempre bons e dos sempre ruins. Há uma convulsão e um embaralhamento social na Amazônia, certo caos, que é o produto natural do modelo concentrador e tendente ao desequilíbrio, em execução imutável desde 1975.
Foi quando entrou em vigor o II Plano Nacional de Desenvolvimento (o PND, com seu capítulo regional, o PDA), que era quinquenal (e que, se não tivesse surgido no governo do general Geisel, um desavisado talvez pensasse ser bolchevique).
Mas esse caos poderá ultrapassar as piores previsões e projeções. O monstro em gestação poderá se tornar ingovernável e, quem sabe, se voltar contra o seu criador. Um Frankenstein social na selva. Capaz de espantar mister Cecil Rhodes.

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