quarta-feira, 6 de junho de 2012

Vale: Ainda é tempo de soltar o verbo



Lúcio Flávio Pinto

O primeiro trem saiu de Carajás, no sul do Pará, em fevereiro de 1985. Devia levar minério de ferro até o porto da Ponta da Madeira, em São Luiz do Maranhão, mas transportou manganês.

Houve uma solenidade para registrar a data, realizada no cinema do núcleo urbano da mina, que fica no município de Parauapebas. O auditório estava lotado de funcionários e convidados da Companhia Vale do Rio Doce, que ainda era estatal.

O governador Jader Barbalho, do PMDB, foi um dos que discursou. E foi o que mais impressionou as pessoas presentes. Um graduado técnico da CVRD foi atrás de mim, no fundo do auditório, e me pediu a ficha do governador.

Jader ainda não completara um ano no cargo, eleito pelo partido da oposição. Foi em 1982, quando se realizou a primeira eleição de governadores pelo voto direto do povo desde 1966. Nesta data, derrotado no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, o regime militar substituiu as eleições gerais pela escolha indireta, através das Assembleias Legislativas.

Jader Barbalho fizera rápida carreira política como líder estudantil, subindo da Câmara de Vereadores de Belém para a Câmara Federal. Era deputado federal quando derrotou o candidato do governo federal, o empresário Oziel Carneiro. 

Oziel fora secretário-executivo do Programa Grande Carajás, criado em 1980, por inspiração do ministro Delfim Netto, para dar maior amplitude à exploração mineral da região. O Estado investiria muito para que o capital privado não precisasse investir tanto naquela região difícil, custosa.

Dei a ficha e acrescentei minha avaliação: Jader tinha muito carisma e esperteza, inteligência e audácia. Mas já começavam a surgir informações desfavoráveis ao seu governo.

De qualquer maneira, eu ainda não perdera de todo as esperanças de que ele pudesse interromper a trajetória de submissão dos governos do Pará às ordens de Brasília.

Um ano e meio depois outra solenidade, esta muito mais pomposa, em Barcarena, a 50 quilômetros de Belém. Já era sob a Nova República, que a morte de Tancredo Neves colocou nas mãos de José Sarney, um dos primeiros a mudar de barco quando o que o conduzia começou a fazer água.

Inaugurava-se a Albras, maior fábrica de alumínio do continente e 8ª do mundo. Negócio conjunto da CVRD com sócios japoneses. Um palanque milionário abrigou a comitiva híbrida de Sarney, incorporando seus velhos companheiros de regime militar e os neófitos da Nova República, além dos amigos do peito de sempre.

Novamente o pessoal da Vale se impressionou, Eu estava de frente para Jader, que discursou (de improviso, como sempre) diante de um círculo de autoridades e convidados.

Velho e então amigo, eu acompanhava com certa perplexidade e alguma satisfação o que ele dizia. Tudo tirado dos muitos artigos que até então eu havia escrito sobre a Albras.

Ele daria consequência àquele conteúdo? Foi o que o dirigente da Vale queria saber, tão assustado quanto os participantes da solenidade em Carajás. Era a primeira vez que ouvia o governador falar. E estava bem impressionado, embora um tanto assustado.

Já então eu podia declarar: tudo aquilo era retórica, discurso para impressionar e conquistar vantagens, muito mais pessoais do que doutrinárias ou programáticas.

Apesar das aparências, Jader, à sua maneira, tirando proveito pessoal e político, fez o que interessava à Vale. Bateu quando convinha, de público. Mas negociava quando era hora, nos bastidores. 

Foi além do seu antecessor e aliado de última hora, o coronel Alacid Nunes, que renegou o passado para derrotar seu maior inimigo, outro coronel, Jarbas Passarinho, que continuou com os seus colegas de farda e de regime.

Depois de ter governado o Pará por duas vezes, ser prefeito da capital e deputado federal, Alacid satisfez-se com um lugar no decorativo Conselho de Administração da companhia estatal. Com direito a jetons e outras benesses. 

Todos os sucessores de Jader Barbalho, que voltaria a governar o Pará entre 1991 e 1994, após breves e fantasiosas escaramuças, acabaram dançando a valsa conforme a música imposta pela Vale, a estatal e a privatizada.

O mais importante momento dessa trajetória foi na segunda metade dos anos 1990, quando começou o reinado tucano do PSDB no Estado.

O médico Almir Gabriel, de passado mais esquerdista do que Jader, prometia ser, finalmente, um intérprete à altura das aspirações e direitos do Pará.

O Estado já era o segundo mais importante da agenda da CVRD, abaixo apenas de Minas Gerais. Mas seu crescimento era que nem o do rabo de cavalo, para baixo. Enquanto o desempenho da Vale era exponencial, para cima e para bem longe.

O Pará caminhava para ser uma versão de Minas bem piorada. Bem pior por causa das suas lideranças tão ruins, prolongadamente péssimas.

Almir tinha sido prefeito de Belém, nomeado por Jader, em 1985, ainda conforme as regras (nada democráticas) do regime militar. O povo das capitais do país não podia escolher o seu prefeito, ao contrário do podiam fazer os moradores dos demais municípios, exceto os declarados de segurança nacional.

O famoso médico também tinha sido senador, responsável pelo capítulo da previdência social da constituição de 1988. Era bem informado e considerado sério. Também possuía um discurso de impressionar ouvintes de primeira audição.

No início, expressando seu passado ideológico, Almir se manifestou contra a desestatização da Vale. Mas depois, com vários agrados, emudeceu. Pouco antes da venda do controle acionário da empresa, em maio de 1997, a CVRD o levou a Marabá para inaugurar aquele que seria o maior investimento em atividade econômica do Brasil naquele momento: a fábrica de cobre metálico da Salobo (só agora em atividade).

Mas o lançamento da pedra fundamental da unidade acabou se restringindo à placa comemorativa, que o governador descerrou. Quando percebeu a manobra, já era tarde. Passou a esbravejar com ênfase cada vez maior contra a Vale privatizada, mas perdera a autoridade moral. Não era mais levado a sério. Calara quando devia ter falado. E ninguém falou no Pará a respeito.

Esta tem sido a marca do relacionamento da poderosa companhia com os políticos no Pará. A Vale descobriu que todos têm seu preço, mesmo aqueles que apregoam o contrário para os seus eleitores e utilizam discursos agressivos. Na intimidade, aceitam a domesticação por milhares ou milhões de argumentos de convencimento. 

E assim passa a caravana da colonização do Pará, dirigida pela Vale, que exaureos recursos minerais do Estado sem dar-lhe a contrapartida devida. E os cães que ladrem são daqueles que o ditado popular define: cão que ladra, não morde.

Infelizmente descrente das lideranças do Pará – e não só das políticas, mas também das empresariais e intelectuais – criei este blog como uma ciranda popular. A ciranda tem cantado e dançado pouco. Pouco de desanimar.

Mas ainda não desanimei. Decidi lançar um dossiê impresso em papel sobre os 15 anos da privatização da Vale e os 70 anos da sua criação, que ocorre neste 1º de junho. O dossiê, com 44 páginas, já circula pelas bancas e livrarias de Belém.

A década e meia do famigerado leilão passaram em branco. E os 70 anos da CVRD, iniciados em junho de 1942? Serão apenas mais festa e discurso para enganar a nós todos, daquele tipo de tolo que toma pirita por ouro?

Espero que não. E espero que o participante desta roda mostre que não pode mais ser assim.

Se as nossas vontades forem bem informadas, sérias, honradas e consequentes, talvez consigamos mudar esse enredo colonial. Antes que o trem se vá e o buraco fique de vez, para servir de túmulo à nossa insensibilidade e despreparo.

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