quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Desfazer tudo em Belo Monte?


As obras da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, que pretende ser a terceira maior do mundo, começaram em junho do ano passado. A Norte Energia, empresa responsável pela obra, diz que foram investidos até agora cinco bilhões de reais.

Esse valor representa quase três vezes mais do que os recursos que o governo do Estado do Pará pretende usar no seu Programa de Investimentos Prioritários ao longo dos próximos três anos, cobrindo um território com 1,2 milhão de quilômetros quadrados e quase oito milhões de habitantes.

Os R$ 5 bilhões já gastos na obra representam apenas 20% do seu orçamento, que é de R$ 26 bilhões, até a usina entrar em funcionamento, em 2015. Mesmo nesse estágio, porém, não indo além de onde está, já seria um dos maiores projetos de infraestrutura realizados no Brasil atualmente.

No dia 13 uma das turmas do Tribunal Regional Federal da 1ª Região determinou a paralisação imediata das obras. O descumprimento acarretaria ao transgressor multa diária de 500 mil reais. A severa penalidade tinha uma razão: o construtor de Belo Monte descumpre a constituição do Brasil.

As obras prosseguem, apesar da grave e histórica decisão. Por um motivo: os punidos ainda não receberam a intimação da decisão, embora o próprio tribunal tivesse previsto que a ordem partiria no dia seguinte. Mais de uma semana depois, o que impediu o cumprimento imediato da medida?

Talvez mera formalidade. Pode ser que neste momento o documento esteja sendo apresentado a quem de direito e o canteiro de obras de Belo Monte, com 20 mil empregados, logo seja desmobilizado. Pode ser também que esse vácuo tenha sido gerado por alguma instância preocupada com o dia seguinte desse ato radical. Nesse intervalo os construtores podem preparar um recurso através do qual consigam revogar a determinação da 5ª turma do TRF-1 e manter o trabalho em andamento.

Tem sido este o roteiro do zigue-zague contínuo na queda de braço entre os que querem construir Belo Monte e os que pretendem inviabilizar a obra. Ambos se beneficiam das posições divergentes ou inconsistentes dos diversos juízes individuais ou colegiados que já se pronunciaram sobre a questão nas várias instâncias do poder judiciário, do estadual ao federal.

Sem ordem judicial, Belo Monte foi paralisada por duas vezes pelos movimentos sociais, os índios à frente. Um mês do cronograma oficial foi comprometido, atrasando o que o consórcio pretendia fazer; Dos 39% previstos de infraestrutura, a execução foi de 25%; 2% dos 9% de canais; nada nos diques e no sítio Pimental. Apenas o sítio Belo Monte está adiantado (4% em relação aos 5% previstos). Nenhuma manifestação de protesto o atingiu.

Se a ordem de paralisação for revogada ou se ela for apenas temporária, o efeito da medida poderá ser medido por bem mais do que os R$ 500 mil da multa diária por descumprimento da ordem judicial. Mas se a decisão exigir a reversão da obra ao estado anterior, apagando-se todas as marcas abertas na natureza e na sociedade local para que as enormes estruturas de concreto e ferro se transformassem numa hidrelétrica de 11,3 mil megawatts, capaz de atender a 40% do consumo nacional de energia?

O Movimento Xingu Vivo, com sede em Altamira, que tem sido o maior antagonista da obra, apresentou em uma nota o seu entendimento sobre a decisão. Argumentou que, como o decreto "que ilegalmente autorizou as obras de Belo Monte foi anulado, e junto com ele as licenças prévia e de instalação", deverão ser encaminhadas "medidas emergenciais de reversão dos principais impactos sobre as populações afetadas e o meio ambiente". Elas seriam:

— destruição das três ensecadeiras (barragens provisórias) já construídas no Xingu e restauração do livre fluxo do rio e de sua navegabilidade.
— recomposição da mata nativa dos 238 hectares desmatados para a construção de canteiros da usina e das demais áreas degradadas pelas obras, como os igarapés do Paquiçamba.
— restituição das áreas de pequenos agricultores compulsoriamente desapropriadas.
— recomposição dos plantios de culturas, principalmente de cacau, das áreas desapropriadas.
— restituição das áreas e reconstrução das casas de ribeirinhos compulsoriamente desapropriadas e demolidas, como as da Vila de Santo Antonio.
— indenização das comunidades rurais, ribeirinhas, indígenas e de pescadores por danos econômicos, morais, ambientais e culturais.

O atendimento dessas providências equivaleria a um flash-back real: o que foi feito teria que ser desfeito. Depois do dinheiro gasto para fazer, seria preciso gastar para refazer. Com um agravante nessa destruição/reconstituição: o rio Xingu vai continuar a vazar por mais dois meses e depois voltará ao período de cheia de seis meses. A descontinuidade vai acarretar efeitos ainda mais limitadores para quem for trabalhar na obra, seja construindo como desconstruindo.

A situação é grave por vários fatores. Não há dúvida que o Congresso Nacional atropelou a constituição quando, em 2005, autorizou o início do licenciamento ambiental da obra, simultaneamente à liberação para a sua construção, sem ouvir previamente as comunidades indígenas da região. A audiência tinha que anteceder o decreto legislativo.

Já se sabe que, a favor ou contra a usina, não há unanimidade entre os índios. A maioria é contra, mas alguns seguiram o exemplo de Luís Xipaya e ficaram do lado de Belo Monte. Mesmo que todos fossem contrários, sua manifestação é apenas informativa. O parlamento decide soberanamente.

A consulta torna-se mera formalidade, embora de cumprimento obrigatório, o que não aconteceu. Mas a maioria dos parlamentares é a favor da hidrelétrica, o que garantiria sua aprovação de novo. Mas depois de muito tempo de paralisação.
A Norte Energia jura que nenhuma terra indígena será atingida diretamente por Belo Monte e que o único prejuízo, a diminuição do fluxo de água a jusante (abaixo) da barragem, será sanado por um sistema de transposição de embarcações, já previsto, e o fornecimento alternativo de água.

Garante ainda que cumpriu tudo que lhe foi imposto pelo governo e está perfeitamente dentro da lei. Sofre por tabela uma decisão que visou os órgãos oficiais, como o Ibama e a Funai, responsáveis pelo licenciamento da obra.

De fato, o sujeito oculto nessa oração conturbada é o governo. 
É ele que tem o controle acionário da empresa concessionária, é ele que se comprometeu a garantir 80% do custo da usina e é ele que exerce o controle sobre a obra em nome do interesse público. Mas esconde a mão quando atira a pedra.

Cinco bilhões de reais depois, Belo Monte é o maior exemplo no Brasil de hoje da dissociação entre os fatos consumados e a lei. Entre a grandiosidade da obra e a responsabilidade que ela impõe, mas que não parece nortear as ações no belo e maltratado rio Xingu.

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