Por Lúcio Flávio Pinto
As
obras da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, que
pretende ser a terceira maior do mundo, começaram em junho do ano
passado. A Norte Energia, empresa responsável pela obra, diz que foram
investidos até agora cinco bilhões de reais.
Esse valor representa quase três vezes mais do que os recursos que o
governo do Estado do Pará pretende usar no seu Programa de Investimentos
Prioritários ao longo dos próximos três anos, cobrindo um território
com 1,2 milhão de quilômetros quadrados e quase oito milhões de
habitantes.
Os R$ 5 bilhões já gastos na obra representam apenas 20% do seu
orçamento, que é de R$ 26 bilhões, até a usina entrar em funcionamento,
em 2015. Mesmo nesse estágio, porém, não indo além de onde está, já
seria um dos maiores projetos de infraestrutura realizados no Brasil
atualmente.
No dia 13 uma das turmas do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
determinou a paralisação imediata das obras. O descumprimento
acarretaria ao transgressor multa diária de 500 mil reais. A severa
penalidade tinha uma razão: o construtor de Belo Monte descumpre a
constituição do Brasil.
As obras prosseguem, apesar da grave e histórica decisão. Por um
motivo: os punidos ainda não receberam a intimação da decisão, embora o
próprio tribunal tivesse previsto que a ordem partiria no dia seguinte.
Mais de uma semana depois, o que impediu o cumprimento imediato da
medida?
Talvez mera formalidade. Pode ser que neste momento o documento
esteja sendo apresentado a quem de direito e o canteiro de obras de Belo
Monte, com 20 mil empregados, logo seja desmobilizado. Pode ser também
que esse vácuo tenha sido gerado por alguma instância preocupada com o
dia seguinte desse ato radical. Nesse intervalo os construtores podem
preparar um recurso através do qual consigam revogar a determinação da
5ª turma do TRF-1 e manter o trabalho em andamento.
Tem sido este o roteiro do zigue-zague contínuo na queda de braço
entre os que querem construir Belo Monte e os que pretendem inviabilizar
a obra. Ambos se beneficiam das posições divergentes ou inconsistentes
dos diversos juízes individuais ou colegiados que já se pronunciaram
sobre a questão nas várias instâncias do poder judiciário, do estadual
ao federal.
Sem ordem judicial, Belo Monte foi paralisada por duas vezes pelos
movimentos sociais, os índios à frente. Um mês do cronograma oficial foi
comprometido, atrasando o que o consórcio pretendia fazer; Dos 39%
previstos de infraestrutura, a execução foi de 25%; 2% dos 9% de canais;
nada nos diques e no sítio Pimental. Apenas o sítio Belo Monte está
adiantado (4% em relação aos 5% previstos). Nenhuma manifestação de
protesto o atingiu.
Se a ordem de paralisação for revogada ou se ela for apenas
temporária, o efeito da medida poderá ser medido por bem mais do que os
R$ 500 mil da multa diária por descumprimento da ordem judicial. Mas se a
decisão exigir a reversão da obra ao estado anterior, apagando-se todas
as marcas abertas na natureza e na sociedade local para que as enormes
estruturas de concreto e ferro se transformassem numa hidrelétrica de
11,3 mil megawatts, capaz de atender a 40% do consumo nacional de
energia?
O Movimento Xingu Vivo, com sede em Altamira, que tem sido o maior
antagonista da obra, apresentou em uma nota o seu entendimento sobre a
decisão. Argumentou que, como o decreto "que ilegalmente autorizou as
obras de Belo Monte foi anulado, e junto com ele as licenças prévia e de
instalação", deverão ser encaminhadas "medidas emergenciais de reversão
dos principais impactos sobre as populações afetadas e o meio
ambiente". Elas seriam:
— destruição das três ensecadeiras (barragens provisórias) já
construídas no Xingu e restauração do livre fluxo do rio e de sua
navegabilidade.
— recomposição da mata nativa dos 238 hectares desmatados para a
construção de canteiros da usina e das demais áreas degradadas pelas
obras, como os igarapés do Paquiçamba.
— restituição das áreas de pequenos agricultores compulsoriamente desapropriadas.
— recomposição dos plantios de culturas, principalmente de cacau, das áreas desapropriadas.
— restituição das áreas e reconstrução das casas de ribeirinhos
compulsoriamente desapropriadas e demolidas, como as da Vila de Santo
Antonio.
— indenização das comunidades rurais, ribeirinhas, indígenas e de
pescadores por danos econômicos, morais, ambientais e culturais.
O atendimento dessas providências equivaleria a um flash-back
real: o que foi feito teria que ser desfeito. Depois do dinheiro gasto
para fazer, seria preciso gastar para refazer. Com um agravante nessa
destruição/reconstituição: o rio Xingu vai continuar a vazar por mais
dois meses e depois voltará ao período de cheia de seis meses. A
descontinuidade vai acarretar efeitos ainda mais limitadores para quem
for trabalhar na obra, seja construindo como desconstruindo.
A situação é grave por vários fatores. Não há dúvida que o Congresso
Nacional atropelou a constituição quando, em 2005, autorizou o início do
licenciamento ambiental da obra, simultaneamente à liberação para a sua
construção, sem ouvir previamente as comunidades indígenas da região. A
audiência tinha que anteceder o decreto legislativo.
Já se sabe que, a favor ou contra a usina, não há unanimidade entre
os índios. A maioria é contra, mas alguns seguiram o exemplo de Luís
Xipaya e ficaram do lado de Belo Monte. Mesmo que todos fossem
contrários, sua manifestação é apenas informativa. O parlamento decide
soberanamente.
A consulta torna-se mera formalidade, embora de cumprimento
obrigatório, o que não aconteceu. Mas a maioria dos parlamentares é a
favor da hidrelétrica, o que garantiria sua aprovação de novo. Mas
depois de muito tempo de paralisação.
A Norte Energia jura que nenhuma terra indígena será atingida
diretamente por Belo Monte e que o único prejuízo, a diminuição do fluxo
de água a jusante (abaixo) da barragem, será sanado por um sistema de
transposição de embarcações, já previsto, e o fornecimento alternativo
de água.
Garante ainda que cumpriu tudo que lhe foi imposto pelo governo e
está perfeitamente dentro da lei. Sofre por tabela uma decisão que visou
os órgãos oficiais, como o Ibama e a Funai, responsáveis pelo
licenciamento da obra.
De fato, o sujeito oculto nessa oração conturbada é o governo.
É ele
que tem o controle acionário da empresa concessionária, é ele que se
comprometeu a garantir 80% do custo da usina e é ele que exerce o
controle sobre a obra em nome do interesse público. Mas esconde a mão
quando atira a pedra.
Cinco bilhões de reais depois, Belo Monte é o maior exemplo no Brasil
de hoje da dissociação entre os fatos consumados e a lei. Entre a
grandiosidade da obra e a responsabilidade que ela impõe, mas que não
parece nortear as ações no belo e maltratado rio Xingu.
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