| by Lúcio Flávio Pinto | 
Espero que este texto anime os integrantes deste blog a participar mais ativamente das discussões, que são a sua razão de ser.
Em
 1984 voltei de uma temporada de estudos nos Estados Unidos disposto a 
fazer o mais crítico acompanhamento possível da construção da 
hidrelétrica de Tucuruí, a quarta maior do mundo, que estava na sua fase
 final, antes do enchimento do reservatório. Escrevia todos os dias 
sobre o tema na coluna de opinião que assinava em O Liberal.
A
 Eletronorte, responsável pela obra, não suportando a cobrança diária, 
se comprometeu a me avisar em tempo de estar em Tucuruí para o início da
 formação do lago artificial, o segundo maior do país, com 3 mil 
quilômetros quadrados. Mas não cumpriu a palavra.
Informado
 por outra fonte de que a última adufa se fechara, finalizando o 
represamento, fretei um táxi-aéreo em Belém e voei imediatamente para 
Tucuruí. Um engenheiro da Eletronorte já me esperava no aeroporto 
(operado pela empresa, que tudo controlava) quando o avião aterrissou.
Mandei
 tocar direto para a usina. De um ponto elevado divisei a paisagem: o 
Tocantins a jusante já sem o suprimento da água de montante e a enorme 
estrutura de concreto segurando aquele riozão, com mais de dois mil 
quilômetros de extensão, o 25º maior rio do planeta. Ali, o homem estava
 desafiando a natureza. Estancara o movimento natural daquelas águas 
pela primeira vez em milhões de anos.
O
 choro, mais forte do que eu, veio sem controle. Ao meu lado, o 
engenheiro Washington não sabia o que fazer. Por que eu chorava? Porque 
ali, naquele momento, diante de uma incrível obra do homem, ao mesmo 
tempo maravilhosa e diabólica, eu senti outro rio pujante a fluir pelas 
minhas veias de caboclo das margens alvas do belo Tapajós.
Uma
 das minhas fontes vitais, a água (mas não uma água qualquer: aquela 
água cristalina e refrescante da minha infância feliz), estava 
irremediavelmente tocada – e alterada – pela mão do homem, humana 
máquina, deus ex-machina.
Foi
 um dos momentos mais fortes e reveladores da minha vida. Refeito do 
choro, mirei o engenheiro da Eletronorte e ordenei: siga-me! E foi um 
tal de subir e descer escadas de adufas, dezenas, centenas, até que 
Washington, menos preparado para a tarefa hercúlea, bateu lona: “Juro 
que todas são iguais, não precisamos examiná-las por inteiro”.
Eu
 sabia disso, claro. Mas queria aplacar a minha fúria de caboclo, 
ludibriado pela grande empresa, como de regra, vítima de sua agressão 
supostamente bem intencionada. Começávamos o ciclo das grandes 
hidrelétricas. Os rios jamais voltariam a ser os mesmos.
A
 partir daquele momento, deixariam de ser caminhos naturais, abrigo 
aquoso dos nossos mergulhos, cúmplice dos amores que juramos como botos 
na fímbria das águas ou aturados sobre as areias sem igual das nossas 
praias.
Vivi
 situação semelhante, em outro contexto, no meu querido Tapajós. Foi em 
2009,  ao deparar com fotos aéreas produzidas pelo Greenpeace sobre 
áreas de floresta que os plantios de soja substituíram. Senti a mesma 
dor no coração.
Como
 estava apenas virtualmente no cenário – e não de corpo presente, como 
em Tucuruí – desta vez não chorei. Mas talvez tenha sido pior. A lágrima
 alivia, consola, acalma. Sem ela, estamos entregues ao pleno domínio da
 consciência. E a lucidez dói muito na Amazônia, sangra no Pará, 
aniquila no Tapajós.
Neste
 exato instante, a discussão sobre o significado da substituição da 
floresta amazônica por novos cultivos, embora necessária, não é o que 
mais importa. Ela terá que vir – e logo. Mas no impacto da 
instantaneidade, o que conta é a dor.
Aquela
 paisagem, antes dominada por árvores de copas gigantes e com raízes de 
anão, agora reduto de rasteira vegetação homogênea, de planta exótica, 
fere a alma, quebra a unidade, rasga a identidade, é pura e bestial 
violência, como diriam nossos antepassados portugueses.
Amazônidas,
 somos filhos da água e da floresta. Temos 12% da água doce superficial 
da Terra e um terço de suas florestas tropicais remanescentes, que são 
as mais ricas em biodiversidade desta nossa Gaia. Água e floresta se 
formaram e nos antecederam desde milhões de anos atrás. Há uns oito mil 
anos – ou mais – os primeiros descendentes do Homo Sapiens se estabeleceram às margens desses ciclópicos cursos d’água e à sombra dessas árvores sem igual.
Durante
 7.500 anos a espécie humana conviveu com os elementos naturais num 
cenário de harmonia (o “paraíso perdido” que Euclides da Cunha procurou 
no século XX). Nos últimos 500 anos esse organismo harmônico, formado 
por homens, árvores e água, se tem desintegrado. Nos últimos 50 anos 
desse meio milênio o processo de destruição dos elementos naturais foi 
avassalador.
Nunca o descendente do Homo Sapiens,
 ao longo de uma trajetória de 20 mil anos, destruiu tanta floresta 
quanto na Amazônia neste último meio século. E nunca desperdiçou tanta 
água, seja ela em si como em suas extensões utilitárias, especialmente 
na forma de energia.
Quem
 disse que precisa ser assim? Quem determinou que não pode ser de outra 
maneira senão assim? Quem apurou que desta maneira, substituindo o reino
 da floresta por novas práticas agrícolas e supostamente silviculturais,
 nos desenvolveremos e seremos felizes?
Não
 fui eu, é claro. Eu não aprisionaria um rio de dois mil quilômetros por
 uma barragem de 75 metros de altura para fazê-lo refluir sobre suas 
águas 200 quilômetros, submergindo três mil quilômetros quadrados, 
cobertos, sobretudo, por vegetação.
Ali
 foram acumulados de mais de 50 trilhões de litros de água, para 
transmitir energia por centenas de quilômetros até grandes consumidores,
 que pagam uma tarifa inferior à de custo (e, ainda assim, relativamente
 cara em comparação ao que seria viável por outro caminho de engenharia e
 outros padrões de gestão no serviço público).
Caboclo
 do Tapajós, eu não mandaria derrubar árvores de 50 metros de altura, 
congregadas num mutualismo sem paralelo, uma na dependência e na 
complementaridade da outra (processo que malmente começamos a conhecer, 
com um sentido que ainda nem somos capazes de divisar). Derrubar para em
 seu lugar fincar plantas de uma complexidade fisiológica, genética e 
biológica em geral que guarda, em relação à floresta, ordem de grandeza 
de uma gota de água no oceano.
Ficaremos
 mais ricos e mais desenvolvidos com essas novas culturas? 
Du-vi-de-o-dó, como dizíamos antes de só repetirmos a sintaxe da TV 
Globo. Mas, se ficarmos, não será a gente amazônica a beneficiada. 
Desapareceremos enquanto seres amazônicos, filhos da floresta e da água,
 últimos dos moicanos em uma cultura que não é o produto da mecânica de 
sempre: do desmatamento.
Por
 que não podemos erguer a cultura da floresta, não como uma etiqueta 
abstrata nem como um presente de deuses internacionais (mesmo que sejam 
guerreiros da paz verde), mas como uma opção inteligente do Homo Sapiens do século XXI? Por que não podemos continuar tentando comandar a nossa vida, pelos nossos padrões, conforme o nosso sentido?
Uma
 avaliação simples, mas nem por isso destituída de significado, feita em
 2009, calculou em 1,6 trilhão de dólares o valor dos minérios 
depositados no subsolo amazônico. Pelo padrão de exploração da época, de
 US$ 3,4 bilhões de renda gerada pelos produtos de origem mineral, seria
 riqueza capaz de garantir essa renda durante 500 anos. Mas a 
biodiversidade era calculada, por esses mesmos analistas, em US$ 4 
trilhões.
Por
 que, então, não dar uma trégua na expansão das frentes econômicas para 
prepararmos uma exploração racional e permanente desse tesouro produzido
 pela natureza amazônica? Por que vender o lauto almoço para ter o magro
 jantar? Por que não três boas refeições diárias, sem exaurir a 
dispensa?
Em
 2007 quase chorei de novo ao ver as fotos de manchas de barro e produto
 químico drenando para o Tapajós por seus afluentes e igarapés, 
sangrados a partir dos garimpos de ouro. Há mais de meio século eles 
surgiram no alto rio, acima de Itaituba, como a redenção de Santarém. 
Garimpeiros enriquecidos apareceram na cidade a comprar terrenos e 
casas, a montar negócios, a gastar a rodo. O que sobreviveu dessas 
várias ondas de “bamburros”? A soja é esse novo ouro? E nós, somos o 
quê?
Eu
 sou o caboclo que chora seu rio aprisionado e sua floresta derrubada. 
Chora, se indigna, reage e escreve um texto como este, pedindo aos novos
 bwanas que cheguem-se a nós, sejam mais um de nós, mas como nós, que somos amazônidas.
E
 o que é ser amazônida? Foi o que um valente advogado paranaense (futuro
 presidente da Funai) me perguntou em 1990, quando participávamos, em 
Paris, da sessão do Tribunal Permanente dos Povos dedicada à Amazônia. 
“Somos todos brasileiros. Não existe esse negócio de amazônida”, 
insistiu o advogado, que se aproximou de mim, aflito, quando usei essa 
expressão na minha exposição aos membros do tribunal. Ele temia que eu 
estivesse sugerindo (ou propondo diretamente) que éramos um país dentro 
do país; que quisesse proclamar a independência da Amazônia do Brasil.
Formamos,
 sim, o mesmo país. Mas não somos iguais. Primeiro, porque somos o 
Brasil tardio, a última região que se tornou brasileira no Império (e, 
ao tentar se integrar, durante a Cabanagem, foi reprimida brutalmente 
pelo governo do Rio de Janeiro). E que permaneceu à parte até o advento 
da República, como se fosse um anexo nacional.
Segundo,
 porque somos uma região dominada pela floresta num país de 
bandeirantes, quase sinônimo de preador de gente e predador de mata. 
Somos a última possibilidade de civilização florestal. Não só no país, é
 bom acrescentar: na história do gênero humano.
Queremos
 o Brasil aqui conosco, partilhando nossa rica história, tão ou mais 
exuberante do que a de qualquer outra região do país. Mas queremos que 
os brasileiros, reconhecendo nossa condição de amazônidas, queiram ser 
amazônidas como nós, ao invés de combater esse nosso ethos.
Prometemos
 ser também bons brasileiros, fazendo a fusão que criará um novo e 
glorioso capítulo na história da humanidade, sem rios violentados e 
árvores desbastadas. Um Brasil verdadeiramente amazônida e uma Amazônia 
genuinamente brasileira.
Por
 que não a utopia em Santarém? E em Belém, Manaus, Rio Branco, Porto 
Velho, Juruti, Carajás? Sem utopia, a Amazônia será uma sucessão de 
fotos lancinantes na parede. E como elas doem!
 
 
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