Lúcio Flávio Pinto:
No
 primeiro trimestre de 2014 a Vale lucrou quase seis bilhões de reais. O
 preço do minério de ferro, seu principal produto, ainda estava ao redor
 de 60 dólares a tonelada, embora três vezes abaixo do recorde, de 2011:
 US$ 180. De janeiro a março deste ano a antiga estatal sofreu um 
prejuízo de R$ 9,5 bilhões. Ou seja: perdeu tudo que ganhou e ainda 
ficou com um acumulado negativo de mais de R$ 3,5 bilhões. Com esse 
desempenho, é provável que 2015 venha a se tornar o pior ano da 
mineradora desde que foi privatizada, em 1997.
A
 valorização recorde do minério de ferro até valores nunca antes sequer 
imaginados se deveu ao ingresso da China como principal consumidora 
mundial do produto. Hoje, os chineses são responsáveis por quase um 
terço do aço do planeta. A febre, porém, passou. E vai se estabilizar 
num preço próximo de US$ 30 a tonelada. Corrigido pela inflação, é 
quanto a Vale recebia quando começou a exportar o minério de Carajás, o 
de mais elevada qualidade de todos, em 1984.
Diante
 dessa constatação, é inevitável a pergunta: pois então, valeu ou não 
valeu a privatização? O que parecia o maior de todos os negócios do 
Brasil no exterior se transformou num dinheiro bumerangue, que vem e 
volta, para gerar efeito multiplicado não no seu local de destino, mas 
na sua origem.
É
 a pergunta obrigatória, mas que ninguém fez, a propósito do maior golpe
 de publicidade internacional promovido em território brasileiro, 
durante a passagem da vasta comitiva de autoridades e empresários 
chineses, que passou na semana passada pelo Brasil. O périplo ocorreu 
num momento crítico, quando o país está combinando duas realidades 
explosivas, mesmo se isoladas (recessão e inflação), com seu efeito 
devastador: a perda da confiança e da credibilidade na administração 
pública e, por decorrência, no futuro.
Um
 número foi trombeteado como se fora a glória: um amplo conjunto de 35 
contratos e acordos entre os dois países resultaria em investimentos de 
US$ 53 bilhões da China no Brasil, o equivalente a três vezes o valor do
 ajuste fiscal pretendido pelo governo para ter dinheiro suficiente para
 honrar seus compromissos. As aplicações chinesas seriam maná 
transferido pelo novo império mundial.
Os
 mais sensatos clamam por moderação, bom senso e inteligência. Apontam 
para a discrepância entre o que a China promete e o que de fato cumpre, 
sempre apenas uma parcela do todo anunciado. Também alertam para o 
significado dos investimentos, quase todos (exceto a compra de aviões da
 Embraer, que associa a necessidade do produto ao desejo de absorver a 
tecnologia dos brasileiros na matéria) voltados para a extração e 
remessa de riquezas brasileiras para a Ásia. Destacaram igualmente as 
relações de troca desfavoráveis nesse intercâmbio, que consolida a 
dependência chinesa.
Exemplar,
 porque já realizado, é o “caso” da antiga Companhia Vale do Rio Doce. O
 presidente que por mais tempo (10 anos) a comandou na era privada, o 
paulista Roger Agnelli, passou a tratar dos negócios com os chineses 
como se portasse um chicote. Impunha preços, desfazia contratos, 
arengava e conseguia que sua vontade prevalecesse.
Arrecadou
 o suficiente para promover um crescimento constante da empresa, 
espalhá-la por novas áreas do mundo, colocá-la em novos setores 
produtivos, fazê-la subir degraus no ranking das mineradoras, já como 
autêntica multinacional, e, ainda assim não satisfeito, endividando-a 
para que a grandeza se consumasse no menor prazo de tempo imaginável. 
Como no velho ditado, se foi alto o crescimento, alto também foi o 
tombo.
Depois
 de suportarem por uns poucos anos a arrogância da Vale, personificada 
no seu presidente, os chineses foram tirando-lhe o chão sob os pés. 
Elevaram o valor do frete e assumiram frações cada vez maiores no 
transporte oceânico. Induziram a Vale a recompor sua frota de enormes 
navios graneleiros, que fora a maior do mundo, e depois proibiram que 
atracassem em portos chineses.
O
 cerco foi tal que agora estão comprando os navios que construíram por 
encomenda do antigo proprietário – naturalmente, eliminando as barreiras
 portuárias, já que os navegadores também são chineses. E assim foram 
reassumindo o controle dos preços, usando como argumento esmagador seu 
peso como compradores.
Realizada
 essa façanha com o minério de ferro, não farão o mesmo com soja, carne e
 outras matérias primas que, beneficiadas em seu território, reexportam 
com grande lucro e enorme vantagem comparativa e competitiva?
O
 maior trunfo da China neste momento é plantar o seu dinheiro numa terra
 arrasada, que não perdeu a sua fertilidade natural, mas está 
transferindo o seu domínio por pura incompetência, desonestidade e falta
 da mais elementar seriedade. Os chineses não concedem financiamentos e 
não fazem aplicações de capital sem proveitosas contrapartidas. Elas se 
materializam em juros, venda de produtos e até em absorção de mão de 
obra chinesa. Além disso, o que visam em especial é o controle da 
logística de remessa das riquezas do país de origem até os seus portos 
de recebimento, o que afeta de modo perigoso a soberania nacional.
Contrariando
 uma diretriz estabelecida ainda no segundo governo militar, o do 
general Costa e Silva (1967/69), o controle acionário de empreendimentos
 logísticos vitais para o país está sendo assumido (ou já estão 
assumido) pelos chineses, legalmente ou virtualmente. Eles têm o 
controle acionário do consórcio vencedor do leilão das linhas de 
transmissão de energia da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. A 
State Grid Brazil Holding, que tem 51% do capital, é estatal. Para todos
 os efeitos, o governo da China controlará a transmissão de energia de 
uma das maiores hidrelétricas do mundo em território brasileiro. O 
restante das ações é dividido entre Eletronorte e Furnas, também 
estatais.
A
 linha, com dois mil quilômetros de extensão, na maior de todas as 
tensões de todo o sistema nacional de energia, está projetada para 
custar R$ 5 bilhões. Atrasada um mês, ela foi lançada simbolicamente 
durante a visita chinesa. Ela se conectará em Minas Gerais ao sistema da
 Chesf para abastecer o sudeste do Brasil.
A
 China Three Gorges International Corporation vai participar da 
construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, de 6.133 megawatts, 
em parceria com a Eletrobrás Furnas, vinculada ao Ministério de Minas e 
Energia.
É
 preocupante verificar que as autoridades brasileiras pareciam 
personagens coadjuvantes na mise-en-scène montada em Brasília para 
sacramentar o grande acordo entre os dois países. A imprensa não 
conseguiu arrancar do Palácio do Planalto mais do que sumárias 
descrições dos acordos e contratos. São mais peças de relações públicas e
 propaganda do que demonstrações de projetos definidos. O planejamento, 
em mais esse grave exemplo, se revela uma fantasia brasileira.
Planejamento
 tecnicamente rigoroso devia ser ferramenta fundamental do Brasil na 
relação com a China. Do Brasil, o primeiro ministro Li Keqiang levou sua
 comitiva para percorrer três países da Aliança do Pacífico – Colômbia, 
Peru e Chile – e neles assinar outra série de ambiciosos projetos de 
investimento.
É
 com essas quatro nações que a China mantém 57% do intercâmbio comercial
 com a América Latina, num intercâmbio que cresceu mais de 20 vezes 
desde o ano 2000 e já passou de 260 bilhões de dólares. Os investimentos
 chineses acumulados nesse período (que antes eram quase zero) superam 
US$ 100 bilhões. E podem ir a US$ 350 bilhões de dólares em 
investimentos até o final da próxima década.
Essa
 estratégia de incremento de trocas requer um caminho direto do 
Atlântico ao Pacífico, como o que o primeiro ministro chinês anunciou ao
 lado da presidente Dilma Rousseff, em Brasília. Ele disse que o seu 
país tem condições de construir uma ferrovia que, partindo do Tocantins,
 siga até o litoral do Peru, ao custo de US$ 30 bilhões.
É
 muito dinheiro, mas perde essa dimensão quando se examinam os 
penduricalhos que acompanham o dinheiro. Os chineses garantem aplicar 
capital de risco na obra, que alguns técnicos consideram, mais do que 
temerária, impossível de realizar, em virtude da barreira representada 
pela cordilheira dos Andes (talvez por subestimarem a engenharia 
chinesa, que acumula tantos feitos nos últimos anos).
Mas
 o Brasil pagará pela tecnologia chinesa, pelos equipamentos que serão 
importados e pela mão de obra recambiada da Ásia e regida pelas regras 
trabalhistas chinesas. Além disso tudo, é claro, a ferrovia será uma 
concessão chinesa – talvez por 50 anos, 30 pelo menos. O perfil colonial
 do comércio exterior do Brasil e do continente com a China se acentuará
 ainda mais.
No
 ano passado o Brasil exportou mais de US$ 40 bilhões para a China, que 
vendeu US$ 38, com pequeno superávit brasileiro, já em queda por causa 
da redução dos preços dos produtos básicos, que têm muito maior volume 
físico, enquanto a marca dos produtos chineses é o maior valor agregado.
 Os chineses acham que esse intercâmbio pode alcançar US$ 100 bilhões 
rapidamente. Já então mais favoráveis a eles.
A
 soja é a principal fonte de negócios, com vendas de 16,6 bilhões de 
dólares. O ferro é o segundo item: proporcionou receita de US$ 12,3 
bilhões em 2014, seguido de petróleo (3,5 bilhões), celulose (1,4 
bilhão) e açúcar (880 milhões de dólares).
Assim,
 as exportações de matérias primas para a China, que foram 68% do total 
em 2000, atingiram 84% das vendas no ano passado. Já é outro o movimento
 inverso: quase 98% das exportações da China para o Brasil são produtos 
manufaturados, em escala crescente os carros de baixo preço, que invadem
 o mercado brasileiro, desbancando concorrentes. Dessa maneira, o Brasil
 se tornou o segundo maior consumidor dos produtos chineses, numa 
dependência que só deve aumentar em função dos problemas econômicos (e 
políticos) internos, que o país não consegue superar.
Dentre
 os quais está o ressurgimento em disparada da dívida externa 
brasileira, que já é a terceira maior do mundo (enquanto a China é o 
segundo maior credor mundial).
Não
 é motivo suficiente para encarar todos os desafios para executar o 
projeto da ligação entre os dois litorais do continente? Pela nova 
ferrovia, soja, ferro e açúcar (mais de US$ 30 bilhões anuais, valor 
equivalente ao da própria ferrovia) terão uma saída direta para o 
Pacífico, economizando em tempo e em frete. O Peru já manifestou sua 
aprovação ao projeto. O início da ferrovia no Tocantins tem seu 
significado: ela receberá o fluxo de carga das ferrovias de Carajás, 
Norte-Sul e Vitória-Minas, transformando-se no maior corredor de cargas 
do continente e um dos maiores do mundo.
Mas
 um corredor não só desnacionalizado: orientalizado – ou, mais 
especificamente, tornado chinês. O propósito vai além do escoamento dos 
produtos. Chega ao controle dos componentes logísticos de todo o 
processo de produção do que interessa ao importador voraz.
Essa
 nova e poderosa plataforma de lançamento de riquezas causará forte 
impacto no fluxo de mercadorias pelo Pará e no rumo do seu processo 
econômico, além de suas eventuais implicações geopolíticas. A direção do
 escoamento será no sentido leste-oeste e não mais norte-sul, embora 
tendo essa direção como satélite da centralização, ao sul de Carajás.
Terá
 um temível impacto sobre o meio ambiente na região a ser cortada pela 
ferrovia. E estimulará ímpetos autonomistas, tornando-os quase 
incontroláveis. Talvez seja o fator que falta para a criação dos dois 
novos Estados, Tapajós e Carajás, por uma determinante que Belém não 
terá mais condições de anular – inclusive porque está despreparada para 
essa função, esvaziando-se como capital de todo o atual Estado do Pará.
 
 
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