sábado, 1 de março de 2008

BETACAROTENA, IPÊ-ROXO E O FIM DO MUNDO

Bellini Tavares de Lima Neto
Advogado e Consultor jurídico

“O ESTADO DE SÃO PAULO”, edição de quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008, página A5
FHC: 'Ele cospe no prato que comeu'
Roberto Almeida
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reagiu ontem à declaração de Lula, que chamou os antecessores de “pé-frio”. “Ele precisa olhar com um pouquinho mais de respeito aqueles que o antecederam. Fica feio, todo dia cospe no prato que está comendo”, afirmou.
No encontro com os empresários, Lula comentou que seu governo tinha sorte. “Um pouco de sorte não faz mal a ninguém. Deus me livre ser pé-frio como outros foram neste país”, afirmou. “A sorte só ajuda quem trabalha duro.”
Ao falar da troca de posição do Brasil, de devedor para credor internacional, disse que a “sorte” foi possível com o ajuste fiscal de 2003 e o aumento do superávit para 4,23% do PIB.

Hoje pela manhã, ao ler o jornal, me deparei com a notinha acima. Li, re-li e estranhamento comecei a me lembrar do betacaroteno, do ipê-roxo e do fim do mundo. É bem verdade que essa tal associação livre inventada pelo Dr. Freud deve ser coisa de gente maluca, mas nunca imaginei que eu estivesse nesse rol. Aí, passado o susto da constatação, resolvi que, em vê\ de entregar os pontos, eu tinha pelo menos a obrigação de procurar entender essa invasão involuntária na minha memória.
Em algum momento num passado não muito distante os jornais e emissoras de televisão começaram a dar destaque a uma extraordinária descoberta da ciência: o betacaroteno. Essa substância miraculosa, extraída da cenoura, tinha um poder curativo muito além da imaginação do mais imaginativo dos mortais. Praticamente tudo podia ser curado com o betacaroteno que também apresentava uma eficiência quase sobrenatural na ação preventiva. Era tomar betacaroteno e se sentir a salvo de quase tudo. Era praticamente a descoberta da fonte da juventude perseguida desde os tempos dos alquimistas.
Não faz muito tempo e os mesmos órgãos de imprensa noticiaram que cientistas haviam descoberto recentemente que o betacaroteno era totalmente inócuo e não tinha função alguma no organismo. Eu fiquei um pouco decepcionado e ao mesmo tempo conformado. Decepcionado porque havíamos voltado ao ponto de partida na busca do elixir da vida eterna. Conformado porque, relapso que sou, nunca tomei uma gota do betacaroteno e, portanto, estava condenado a morrer de alguma doença em algum momento.
Esse betacaroteno foi um furacão de origem estrangeira. Nós, brasileiros, no entanto, também tivemos o nosso. Foi o ipê-roxo. Quem não se lembra dos poderes milagrosos do ipê-roxo na cura do câncer. Brasileiro é assim, mesmo. Em vez de ficarmos no varejo de doenças menos nobres ou nessa monotonia da prevenção, nós já descobrimos logo a beberagem que curaria o câncer. Vamos logo ao atacado, ao andar de cima, ao topo do pódio.
O furor do ipê-roxo, no entanto, também não teve vida muito longa e, salvo melhor juízo, ninguém mais fala no assunto. A simpática arvorezinha voltou a sua função original de compor a natureza e ornamentá-la, o que, convenhamos, não é pouco, não.
E os fins de mundo? Já vivemos alguns. Quando o mundo atingiu o final do primeiro milênio, consta que tudo estava preparado para o fim dos tempos. Falhou. Veio o final do segundo milênio e lá fomos nós, outra vez, bater às portas da eternidade e do juízo final. Outro alarme falso. Já passamos oito anos e continuamos por aqui, ainda que ameaçados pelo calor intenso ou pelo frio glacial ou por alguma bomba nova que algum maluco resolva inventar e detonar.
É interessante notar como, pelo que parece, nós precisamos de coisas assim, que nos iludam e nos mantenham nessa euforia. Mesmo sabendo que as histórias não tenham grande chance de prevalecer como verdades, nós acabamos nos entregando a elas e vivendo essa euforia, esse entusiasmo quase febril para, algum tempo depois, ou cair no esquecimento ou numa profunda frustração. Se isso fizer parte da composição psicológica e emocional do ser humano, acho que não há nada a se fazer senão repetir o fenômeno de tempos em tempos.
É claro que também existe a possibilidade de que tudo seja pura manipulação por parte de alguns, estrategicamente posicionados para exercer esse poder de convencimento da grande massa. Aí, esses detentores passageiros do poder de convencimento vão impingindo suas versões dos fatos e usufruindo dos resultados da manipulação.
Pode ser, por fim, que tudo seja fruto da conjugação dos dois fatores: a necessidade dos manipulados e o oportunismo dos manipuladores. Confesso que me incomoda muito essa impressão de que esta última hipótese tem um jeito enorme de ser verdadeira. Quando leio, no jornal, que o atual ocupante da poltrona do Palácio da Alvorada declara que a mudança da posição do país de devedor para credor internacional é fruto de suas iniciativas e de um pouco de sorte, começo a ver crescer no horizonte uma enorme cenoura, repleta de betacaroteno. Quando o mesmo senhor se benze e se persigna por não ter a falta de sorte de seus antecessores e ainda conclui que a sorte só está do lado de quem trabalha forte, não consigo evitar ver crescerem, milagrosamente, milhares de árvores de ipê-roxo. Quando, por fim, leio que, ao falar da troca de posição do Brasil, de devedor para credor internacional, ele disse que a “sorte” foi possível com o ajuste fiscal de 2003 e o aumento do superávit para 4,23% do PIB, só posso pensar que chegamos ao fim do mundo e desta vez é para valer.
Se, depois dessa temporada de fantasias, o mundo realmente se acabar, tanto melhor. Ninguém vai ter que pagar a conta nenhuma pelos estragos. Mas, e se o mundo não acabar? E se for outro alarme falso? Não consigo nem imaginar o que nos espera. Ou, quem sabe, até pudesse imaginar, mas talvez seja melhor nem tentar. Como é que vai ser quando a sorte se acabar, quando o paciente tratado com ipê-roxo der de cara com a realidade, quando os usuários de betacaroteno descobrirem que aquilo era só efeito placebo.
Aí a gente tenta aprender o poema de Drummond e sai por aí perguntando: “e agora, José? Sim, porque pode ser que nem sobre prato para cuspir depois de comer.

28 de fevereiro de 2008

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