terça-feira, 25 de março de 2008
Crônica do dia - Miguel Oliveira
Penico de barro enferruja?
- Alô?
- Alô?
- De onde fala?
- Da casa da dona Joaquina...
- A senhora me faz um favor?
- Sim, pode falar...
- A senhora sabe informar se penico de barro enferruja?
- Depende do rabo que nele senta seu f.d.p....
Eram só três números no início da telefônica em Santarém no meu tempo de menino, na década de 60.
Salvo engano, o telefone da casa da dona Joaquina tinha o número 124. Era o tempo em que possuir uma linha telefônica instalada em casa dava sinal de prestígio social.
De origem modesta, nunca tinha usado um telefone. Mas mamãe precisava falar com dona Puruca, em Belém.
- Vai lá, meu filho, pede para a dona Joaquina emprestar o telefone.
Obediente, pus-me rapidamente a atravessar a rua do Imperador e serelepe galguei o portão principal do velho bangalô dos Braz Rebelo, na esquina da travessa Pedro Teixeira, onde hoje funciona um restaurante.
- Dona Joaquina, a mamãe precisa dar um recado para Belém. Dona Puruca está doente...
- O telefone está cortado!, resmungou a vizinha.
Menino atrevido, ousei contestá-la.
- Mas não tem nenhum fio pendurado aí fora, dona Joaquina...
-Menino, menino, respeita os mais velhos. Tô falando que está cortado porque está cortado, resumiu dona Joaquina.
Dei meia-volta e logo estava diante de dona Sarita, minha mãe, sentada no alpendre de nossa casa que fazia fundos com o rio Tapajós.
Ela sustentou os óculos com a ponta do dedo indicador, de modo a permitir uma melhor visão e, à sua maneira, cobrou o cumprimento do mandado.
-Telefonastes como te mandei?
-Não, minha mãe.
-Por quê?
- O telefone está cortado.
-Menino mentiroso..vais ficar de castigo...nada de jogar bola na praia por uma semana.
-Mas, mamâe... dona Joaquina é que é a mentirosa, não eu. Foi ela quem falou isso.
-Menino, menino, respeita os mais velhos. Mas quando já que a dona Joaquina iria inventar que o telefone dela está "cortado"?
-Foi o que ela disse.
-Menino...
No final da tarde, minha mãe e dona Joaquina sentavam à porta do bangalô para contar prosa. Nem chuva desfazia aquela dupla de amigas.
Lá pela tantas, antes de escurecer, minha mãe não conteve a curiosidade e perguntou se o telefone de dona Joaquina estava mesmo 'cortado'...
Dona Joaquina deu uma sonora gargahada.
- Sarita, tu sabes que um engraçadinho quis brincar comigo no telefone hoje de manhã? Fiquei com tanta raiva que respondi com um palavrão, bem do jeito que a gente gosta de soltar quando dá uma topada com o pé. Ele desligou correndo...
-Mas por causa disso "cortaram" o telefone? Indagou minha mãe.
-Não, Sarita. Quando o menino veio aqui de manhã eu ainda estava me restabelecendo do acesso de raiva. Não queria nem ouvir o ruído do telefone sendo usado. Foi só isso...
- E tu sabes o nome do autor dessa brincadeira de mau gosto? Retrucou minha mãe.
-Tenho uma desconfiança...
- Conta, conta, quem é?
- O meu prório filho!
Dona Joaquina e minha mâe Sarita já não estão mais entre nós. Na década de 90, com pouco mais de 70 anos, as duas amigas foram morar em outro plano espiritual.
Lá com certeza, as gargalhadas de Joaquina e Sarita estão sendo ouvidas com muita intensidade. Quem sabe, depois de receberem um trote passado por alguém do outro lado da linha de um celular com chip, a coqueluche dos tempos modernos.
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Um comentário:
Muito legal essa crônica Miguel, uma reunião dos irmãos com ceteza renderia muitas lembranças gostosas como essa. parabéns!
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