Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e ariculista de O Estado do Tapajós
O momento mais importante da escola antiga era, para mim, o da leitura. Quando ouvia ou quando lia, minha reação era a mesma: saía do texto e ficava a errar pela memória. Ora tentava dar corpo ao que ouvia, ora recriava o que lia. Um dos maiores impactos foi a descrição do sertanejo, o forte, um elemento da natureza, em contraste com a neurastenia das cidades. Foi no Grupo Escolar Camilo Salgado, onde minha tia era diretora. Perguntei à professora sobre o livro do qual fora extraído aquele trecho para a leitura do dia. “Os Sertões”, ela informou, não sem aconselhar: não leia “A Terra” nem “O Homem”; vá direto à “Luta”, o capítulo que tem ação e é interessante.
Mas comecei pelo começo e continuei na seqüência estabelecida pelo autor, Euclides da Cunha, até o fim, deslumbrado. “A Terra” é a mais encantadora descrição geográfica que já li até hoje. Como engenheiro, ele sabia, tecnicamente, do que falava quando citava rochas e demais acidentes naturais. Como artista, recriava a paisagem com uma narrativa cheia de símbolos, de imagens, de inventiva pessoal. A plasticidade é tal na abertura de “Os Sertões” que precisei voltar várias vezes nos anos seguintes. Primeiro, para apreciar o som das palavras. Em seguida, para captar o que elas queriam dizer, seu significado. E, por fim, usando-as como roteiro para uma consulta à cartografia. A geografia adquiriu aquele componente mágico tão acuradamente observado por um grande leitor de literatura, o nosso Eidorfe Moreira (filósofo da geografia ou geógrafo da filosofia, hein, Benedito Nunes?).
Essa paragem já remota da minha vida veio-me fresca ao ler a entrevista do jornalista Marcos Sá Corrêa à última edição da revista História. Ele recomenda a criação de uma cadeira chamada Euclides da Cunha em toda faculdade de comunicação. Nela, os futuros jornalistas aprenderiam o que é ética, o que é revelar o mundo real, como Euclides fez, desvendando o interior do Brasil para as sanguessugas litorâneas que dominam o país e lhe impõem sua visão da nação. Mas também aprenderiam a não escrever como Euclides, que “escrevia de uma maneira chatíssima”. Repetindo a professora do primário, Marcos pontifica, hiperbólico: “Os Sertões começa chato, é preciso passar por aquela maçaroca inicial, mas quando você chega na guerra, o texto começa até a ficar melhor”.
Até entendo o que o filho de Vilas-Boas Corrêa (meu colega de Estadão) quis dizer, mas sua boa intenção pode resultar numa tragédia. É preciso assinalar logo uma verdade secular: Os Sertões não é jornalismo, é literatura. Claro que revelou muitas verdades, desmistificou muitas asneiras, é o melhor relato da guerra de Antônio Conselheiro e seus jagunços por quem a viu. Desde então, porém, muito melhor jornalismo e historiografia sobre o tema foi produzido, em alguns aspectos cobrindo Os Sertões de cinzas. Mas esse ainda é – e o será cada vez mais – o grande épico brasileiro, à altura de criações equivalentes, como Guerra e Paz, de Tolstói.
Euclides não criou uma nova língua para se aproximar das Geraes, como fez Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Ele simplesmente aproximou velhos dicionários da terra e dos homens, refazendo sua história, de uma forma appassionata, com sua imaginação febril, profética, trágica. A grande obra é o seu criador, que nela se contém e a contém. É provável que o conselho de Marcos não sirva de cautela aos jornalistas, permitindo-lhes aprender no livro o que devem aprender. Mas certamente desviará muito leitor do prazer fecundo da leitura de Os Sertões, que deve começar pela descrição da terra, por ser inigualável.
Às vezes os jornalistas, pagando prêmio à originalidade, cometem o pecado de serem categóricos demais, de darem um salto que excede as próprias pernas. Na mesma entrevista, Marcos proclama, como se tivesse à mão as tábuas da lei: “Todos os jornais em papel vão morrer nos próximos vinte anos no máximo, e já vão tarde”. A internet já os está sepultando. O dobre de finados soou para eles.
Talvez até venha a ser verdade. Mas ao final da leitura das 675 páginas de Os Melhores Jornais do Mundo, livro (em papel) de Matías M. Molina, fica-se, no mínimo, na dúvida, elemento mais propício às descobertas do que a certeza com data certa, como a de Marcos. Depois do mais completo levantamento já publicado em língua portuguesa sobre os mais influentes jornais do mundo, Molina observa a longevidade dessas publicações: “Dois deles foram fundados no século XVIII, onze no século XIX e apenas quatro no século XX – embora três deles tenham sido herdeiros diretos de diários muito antigos”.
Alguns dos melhores jornais estão em crise e é provável que mudem de donos ou mesmo desapareçam, mas não todos e nem essa forma de divulgação de informações, se a busca de qualidade continuar a ser a sua principal diretriz, para se fazer ouvir e influir, sendo aquele tipo de bom jornal caracterizado por Arthur Miller: “a nação falando para si mesma”. E com um toque de grandeza que se realiza pela capacidade “de ter uma visão crítica a respeito de si mesmo”.
Utopia? Quimera? Molina cita um exemplo que impressiona: a revista inglesa The Economist dobrou sua tiragem em 13 anos: passou de 500 mil exemplares em 1993 para um milhão de cópias em 2006. Quem já teve a oportunidade de ler a volumosa publicação dispensará epitáfios tão categóricos quanto o de Marcos. Seu perfil, ao contrário do de Euclides, não combina com o figurino de profeta.
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